MÁRIO LOPOMO
Na metade do século vinte a religiosidade era tanta que a semana santa era “Realmente Santa”. Em 1951. Estávamos de mudança do Itaim para a Vila Olímpia. Era o mês de Abril e meu pai tinha fechado negócio. O recibo estava já na mão dele. Era um papel branco opaco aquele de embrulhar pão. O que valia era a assinatura do homem que estava vendendo. Naquele tempo os negócios era feito na base do “fio do bigode”
Por uns dias seu Manoel e dona Yolanda, iam continuar morando por mais uns dias até arrumar outra casa. Então naquela semana que tinha o feriado da sexta feira santa, meu pai nos levou para ver a nova casa. Chegando lá vi que a casa não era tão nova como tinha sido dito. Nova era a maneira de falar, por estarmos em outra casa. Era um autêntico casebre de alvenaria. Uma casa de telhado duas águas. Com quatro cômodos e uma área ficaria o tanque. No quintal o poço de água potável e no fundo a cisterna (fossa) para levar os dejetos humanos.
O reboque era muito mal feito, e a pintura uma caiação de uma única mão, pintada na base da brocha.Por fora era pão bolorento, por dentro não era bela viola. Não tinha forro e as telhas ficavam expostas, dava para se ler que elas eram fabricadas na cidade de Porto Ferreira. Perto de onde moravam Salomão Esper e Joelmir Beting. Mas coisa de doer ver era o Chão. Se pelo menos fosse cimentado tudo bem, mesmo um cimentado rústico, vá lá. Para nosso espanto o chão era atijolado. E alguns tijolos desgastados devido à lavagem que fazia uma barriga que molhando ficava com água empossada.
Como nossa visita foi inesperada a mulher do dono estava envergonhada pelo motivo de a casa estar toda desarrumada. Sua justificativa foi pelo fato de ser Sexta Feira Santa, um dia em que não se fazia nada em respeito ao “Cristo Morto”.
Era assim aquele tempo, o respeito era total, o rádio tocava música clássica lenta. Era um tempo que não havia poluição sonora que qualquer barulho por menor que fosse se ouvia. Imagine então, na Sexta Feira Santa. Não havia aquele barulho de crianças brincando de pique. Jogar bola nem pensar porque os padres ensinavam que chutando uma bola, estávamos chutando a cabeça de Jesus.
Não se podia comer carne porque você estaria comendo parte do corpo de Jesus e tomar o vinho que representava o sangue de Cristo, com o tempo a coisa foi mudando e a própria igreja nos anos 1980, autorizou através do Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns que os católicos já podiam comer carne na Sexta Feira Santa.
Quando estava com dezoito anos um amigo, o Cesar me convidou para entrar na congregação Mariana. Era uma facção da igreja que reunia jovens para serem catequizados pela igreja. As moças eram as filhas de Maria. Perguntei ao Cesar. Ki, ki a gente faz alem de ir à missa aos domingos?
-Bem, depois da missa a gente vai a reunião e depois fica liberado. Agora o time de futebol da congregação é muito bom, está invicto há muitos jogos. Aí valeu a pena entrar para a tal da congregação, ir a missa e fazer sacrifício de ter que confessar aos sábados, ficar até domingo de manhã sem cometer pecados, e três horas de jejum, para receber a hóstia sagrada.
Com o passar do tempo fui me adaptando com aquele negócio. Cada pessoa tinha sua função na igreja. Fora os congregados e filhas de Maria, tinha também as senhoras do Rosário e os homens idosos que eram os Vicentinos, todos reunidos pela mesma causa, dar uma força a Deus. Os veteranos sempre com martelo e pregos a mão, tinham reparos a fazer na igreja.
As mulheres lavavam a igreja e colocavam as flores nos vasos e trocavam a água. Outras mulheres arrumavam a casa do padre, De todos só ele, o Padre não fazia nada. Quer dizer fazia alguma coisa, rezava a missa.
Quando chegava a Semana Santa a coisa ficava mais onerosa em termos de trabalho. Começava pelo Domingo de Ramos quando todos levavam galhos de oliveira ou outros ramos para serem bentos naquele domingo. Depois levavam prá casa deixavam ao sol até ficar bem sequinho para virar incenso e um dia queimar no caso de uma chuva forte acompanhada de raios e trovões fortes. Segunda, terça, e quarta feira tinham terço com as pessoas se deslocando a frente dos quadros com as fotos da peregrinação de cristo, desde o dia que estava no monte das oliveiras até o dia em que foi crucificado. Eram as treze estações.
Já na quinta feira a coisa começava esquentar. No começo da noite tinha a solenidade do Lava-pés. O padre reunia 12 homens todos descalços com os pés dentro de uma bacia com água, vinha o padre lavava os pés de cada um secava e dava um beijo no peito do pé da cada um.
Dai por diante novamente o terço, isso para “encher lingüiça” até perto da meia noite quando tinha a celebração do inicio da vigília do corpo de Cristo Morto. O padre mandava a gente pegar uma vela gigante de mais de um metro de altura com uns 15 cm de espessura. Quando ela era acesa, eu apagava a luz da igreja e o padre com ela na mão adentrava. E eu ficava do lado de fora para depois acender novamente.
A igreja já estava lotada num profundo silêncio com o pessoal acompanhando a entrada lenta do padre, e quando ele chegava ao altar, outro congregado lá no fundão, dava um assobio que era pra eu acender a luz da igreja.
Essa solenidade ia ate uma hora e pouco na manhã. Muitas pessoas continuavam na igreja para a vigília do Cristo Morto. Na sexta feira logo pela manhã aos primeiros raios solares o pessoal que levantava cedo se encaminhava para a igreja para visitar o Corpo de Cristo no caixão em cima de dois cavaletes no altar. A direita de quem chegava há frente do caixão uma cesta de vime ficava a espera do dinheirinho, aquela velha ajuda do pessoal em dar sua colaboração. 80% da grana eram moedas.
Olhando o jeito das pessoas se portarem, dava vontade de rir. Tinha gente que dava uma moeda e pegava outra. Perguntado do porque em dar uma e pegar outra, era dito que servia de amuleto, para dar sorte. E elas faziam questão de dizer que sempre retirava outra de menor valor da que foi doada. Só faltava pegar uma de maior valor.
A noite chegava o momento mais esperado por todos: a procissão: Brotava gente por todos os lados. A procissão saía sempre às 19h30 min., e tinha o seu percurso saindo da igreja, que fica na Rua casa do Ator. A procissão descia ela. Virava à direita na Rua Nova Cidade, depois Rua Quatá, subia até a Rua Baluarte, descia a Gomes de Carvalho, entrando na Ribeirão Claro e novamente a Casa do Ator, já em frente à igreja.
Durante o percurso, nada de silêncio. Era oração em voz alta e cânticos: “Queremos Deus, homens ingratos...”.
Para carregar o caixão contendo o Corpo de Cristo, havia uma disputa bem grande. Todo mundo queria ajudar a carregar o caixão. O revezamento era muito grande e uma pessoa chegava a pegar no varal do caixão mais de três vezes.
A cada esquina a procissão dava uma parada, porque dona Emilia Cavalieri, que simbolizava Verônica, cantava com sua bela voz de soprano o cântico correspondente àquele ato. Com sua voz forte e lenta, ia desenrolando o pano que mostrava a efígie de Jesus com a coroa de espinho sangrando sua testa.
E eu, novamente como contra-regra, era o felizardo em ouvir bem de perto as quatro vezes que ouve a parada para o cântico, por ter que segurar o microfone para que o carro de som captasse sua voz. Era o momento mais emocionante da procissão.
Ao chegar ao pátio da igreja havia os discursos finais, e aí começava o nosso trabalho em recolher as coisas e fechar a igreja. Igreja fechada íamos todos a sacristia contar o dinheiro arrecadado naquele dia. Isso se repetia todos os anos.
Na ultima vez que participei desse voluntariado, o padre Jeremias me deu dinheiro e disse: Mário vai lá no bar do Valdemar e compre meia dúzia de cervejas. Então a contagem da grana foi regada a cerveja bem gelada com direito a colarinho. Aí foi muito para minha cabeça, parei!
No caminho de volta a casa já víamos muita gente fazendo o Judas para marretar no dia seguinte. Um ato que se tornou tradicional na baixada do Glicério, onde tudo acabava em confusão, com a policia.
À meia-noite do sábado, sábado santo, que a igreja queria que fosse dito no lugar do sábado de aleluia. Tinha uma missa que ia pela madrugada de domingo de Páscoa.
Aí se fazia outra procissão. Era a procissão do encontro. Aliás, eram duas procissões. Uma em sentido contrário à outra. A que tinha a imagem de Jesus e outra com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, o encontro se dava bem em frente à igreja.
Muita gente era pega de surpresa, pois era uma hora ou mais da manhã do domingo de Páscoa, e mesmo de pijama as pessoas vinham ao portão em plena madrugada, para a ver passar, com as pessoas segurando velas acesas, numa época de pouca iluminação pública. Ficava muito bonito, principalmente quando havia um declive íngreme e quem estava na parte alta da rua tinha um espetáculo maravilhoso.
Hoje são novos tempos. Na quinta-feira Santa as rodovias já estão congestionadas e as famílias vão passar a Semana Santa na praia ou campo.
Mário Lopomo
Na metade do século vinte a religiosidade era tanta que a semana santa era “Realmente Santa”. Em 1951. Estávamos de mudança do Itaim para a Vila Olímpia. Era o mês de Abril e meu pai tinha fechado negócio. O recibo estava já na mão dele. Era um papel branco opaco aquele de embrulhar pão. O que valia era a assinatura do homem que estava vendendo. Naquele tempo os negócios era feito na base do “fio do bigode”
Por uns dias seu Manoel e dona Yolanda, iam continuar morando por mais uns dias até arrumar outra casa. Então naquela semana que tinha o feriado da sexta feira santa, meu pai nos levou para ver a nova casa. Chegando lá vi que a casa não era tão nova como tinha sido dito. Nova era a maneira de falar, por estarmos em outra casa. Era um autêntico casebre de alvenaria. Uma casa de telhado duas águas. Com quatro cômodos e uma área ficaria o tanque. No quintal o poço de água potável e no fundo a cisterna (fossa) para levar os dejetos humanos.
O reboque era muito mal feito, e a pintura uma caiação de uma única mão, pintada na base da brocha.Por fora era pão bolorento, por dentro não era bela viola. Não tinha forro e as telhas ficavam expostas, dava para se ler que elas eram fabricadas na cidade de Porto Ferreira. Perto de onde moravam Salomão Esper e Joelmir Beting. Mas coisa de doer ver era o Chão. Se pelo menos fosse cimentado tudo bem, mesmo um cimentado rústico, vá lá. Para nosso espanto o chão era atijolado. E alguns tijolos desgastados devido à lavagem que fazia uma barriga que molhando ficava com água empossada.
Como nossa visita foi inesperada a mulher do dono estava envergonhada pelo motivo de a casa estar toda desarrumada. Sua justificativa foi pelo fato de ser Sexta Feira Santa, um dia em que não se fazia nada em respeito ao “Cristo Morto”.
Era assim aquele tempo, o respeito era total, o rádio tocava música clássica lenta. Era um tempo que não havia poluição sonora que qualquer barulho por menor que fosse se ouvia. Imagine então, na Sexta Feira Santa. Não havia aquele barulho de crianças brincando de pique. Jogar bola nem pensar porque os padres ensinavam que chutando uma bola, estávamos chutando a cabeça de Jesus.
Não se podia comer carne porque você estaria comendo parte do corpo de Jesus e tomar o vinho que representava o sangue de Cristo, com o tempo a coisa foi mudando e a própria igreja nos anos 1980, autorizou através do Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns que os católicos já podiam comer carne na Sexta Feira Santa.
Quando estava com dezoito anos um amigo, o Cesar me convidou para entrar na congregação Mariana. Era uma facção da igreja que reunia jovens para serem catequizados pela igreja. As moças eram as filhas de Maria. Perguntei ao Cesar. Ki, ki a gente faz alem de ir à missa aos domingos?
-Bem, depois da missa a gente vai a reunião e depois fica liberado. Agora o time de futebol da congregação é muito bom, está invicto há muitos jogos. Aí valeu a pena entrar para a tal da congregação, ir a missa e fazer sacrifício de ter que confessar aos sábados, ficar até domingo de manhã sem cometer pecados, e três horas de jejum, para receber a hóstia sagrada.
Com o passar do tempo fui me adaptando com aquele negócio. Cada pessoa tinha sua função na igreja. Fora os congregados e filhas de Maria, tinha também as senhoras do Rosário e os homens idosos que eram os Vicentinos, todos reunidos pela mesma causa, dar uma força a Deus. Os veteranos sempre com martelo e pregos a mão, tinham reparos a fazer na igreja.
As mulheres lavavam a igreja e colocavam as flores nos vasos e trocavam a água. Outras mulheres arrumavam a casa do padre, De todos só ele, o Padre não fazia nada. Quer dizer fazia alguma coisa, rezava a missa.
Quando chegava a Semana Santa a coisa ficava mais onerosa em termos de trabalho. Começava pelo Domingo de Ramos quando todos levavam galhos de oliveira ou outros ramos para serem bentos naquele domingo. Depois levavam prá casa deixavam ao sol até ficar bem sequinho para virar incenso e um dia queimar no caso de uma chuva forte acompanhada de raios e trovões fortes. Segunda, terça, e quarta feira tinham terço com as pessoas se deslocando a frente dos quadros com as fotos da peregrinação de cristo, desde o dia que estava no monte das oliveiras até o dia em que foi crucificado. Eram as treze estações.
Já na quinta feira a coisa começava esquentar. No começo da noite tinha a solenidade do Lava-pés. O padre reunia 12 homens todos descalços com os pés dentro de uma bacia com água, vinha o padre lavava os pés de cada um secava e dava um beijo no peito do pé da cada um.
Dai por diante novamente o terço, isso para “encher lingüiça” até perto da meia noite quando tinha a celebração do inicio da vigília do corpo de Cristo Morto. O padre mandava a gente pegar uma vela gigante de mais de um metro de altura com uns 15 cm de espessura. Quando ela era acesa, eu apagava a luz da igreja e o padre com ela na mão adentrava. E eu ficava do lado de fora para depois acender novamente.
A igreja já estava lotada num profundo silêncio com o pessoal acompanhando a entrada lenta do padre, e quando ele chegava ao altar, outro congregado lá no fundão, dava um assobio que era pra eu acender a luz da igreja.
Essa solenidade ia ate uma hora e pouco na manhã. Muitas pessoas continuavam na igreja para a vigília do Cristo Morto. Na sexta feira logo pela manhã aos primeiros raios solares o pessoal que levantava cedo se encaminhava para a igreja para visitar o Corpo de Cristo no caixão em cima de dois cavaletes no altar. A direita de quem chegava há frente do caixão uma cesta de vime ficava a espera do dinheirinho, aquela velha ajuda do pessoal em dar sua colaboração. 80% da grana eram moedas.
Olhando o jeito das pessoas se portarem, dava vontade de rir. Tinha gente que dava uma moeda e pegava outra. Perguntado do porque em dar uma e pegar outra, era dito que servia de amuleto, para dar sorte. E elas faziam questão de dizer que sempre retirava outra de menor valor da que foi doada. Só faltava pegar uma de maior valor.
A noite chegava o momento mais esperado por todos: a procissão: Brotava gente por todos os lados. A procissão saía sempre às 19h30 min., e tinha o seu percurso saindo da igreja, que fica na Rua casa do Ator. A procissão descia ela. Virava à direita na Rua Nova Cidade, depois Rua Quatá, subia até a Rua Baluarte, descia a Gomes de Carvalho, entrando na Ribeirão Claro e novamente a Casa do Ator, já em frente à igreja.
Durante o percurso, nada de silêncio. Era oração em voz alta e cânticos: “Queremos Deus, homens ingratos...”.
Para carregar o caixão contendo o Corpo de Cristo, havia uma disputa bem grande. Todo mundo queria ajudar a carregar o caixão. O revezamento era muito grande e uma pessoa chegava a pegar no varal do caixão mais de três vezes.
A cada esquina a procissão dava uma parada, porque dona Emilia Cavalieri, que simbolizava Verônica, cantava com sua bela voz de soprano o cântico correspondente àquele ato. Com sua voz forte e lenta, ia desenrolando o pano que mostrava a efígie de Jesus com a coroa de espinho sangrando sua testa.
E eu, novamente como contra-regra, era o felizardo em ouvir bem de perto as quatro vezes que ouve a parada para o cântico, por ter que segurar o microfone para que o carro de som captasse sua voz. Era o momento mais emocionante da procissão.
Ao chegar ao pátio da igreja havia os discursos finais, e aí começava o nosso trabalho em recolher as coisas e fechar a igreja. Igreja fechada íamos todos a sacristia contar o dinheiro arrecadado naquele dia. Isso se repetia todos os anos.
Na ultima vez que participei desse voluntariado, o padre Jeremias me deu dinheiro e disse: Mário vai lá no bar do Valdemar e compre meia dúzia de cervejas. Então a contagem da grana foi regada a cerveja bem gelada com direito a colarinho. Aí foi muito para minha cabeça, parei!
No caminho de volta a casa já víamos muita gente fazendo o Judas para marretar no dia seguinte. Um ato que se tornou tradicional na baixada do Glicério, onde tudo acabava em confusão, com a policia.
À meia-noite do sábado, sábado santo, que a igreja queria que fosse dito no lugar do sábado de aleluia. Tinha uma missa que ia pela madrugada de domingo de Páscoa.
Aí se fazia outra procissão. Era a procissão do encontro. Aliás, eram duas procissões. Uma em sentido contrário à outra. A que tinha a imagem de Jesus e outra com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, o encontro se dava bem em frente à igreja.
Muita gente era pega de surpresa, pois era uma hora ou mais da manhã do domingo de Páscoa, e mesmo de pijama as pessoas vinham ao portão em plena madrugada, para a ver passar, com as pessoas segurando velas acesas, numa época de pouca iluminação pública. Ficava muito bonito, principalmente quando havia um declive íngreme e quem estava na parte alta da rua tinha um espetáculo maravilhoso.
Hoje são novos tempos. Na quinta-feira Santa as rodovias já estão congestionadas e as famílias vão passar a Semana Santa na praia ou campo.
Mário Lopomo