Reproduzimos mais uma vez a excelente entrevista do Padre Válber, com quem tivemos o prazer de passar neste Eneser alguns minutos ouvindo dele sua experiência e seus temores em relação à situação indígena, principalmente os do Tocantins.
Essa entrevista foi publicada no informativo da Província do Rio em abril de 2011 e também aqui no blog.
Padre Válber está retornando ao seu trabalho com os indígenas após passar algum tempo cuidando de sua mãe que estava adoentada.
Padre Válber nasceu em 20/05/1943 e foi ordenado Sacerdote em 27/08/1978
Nossos votos ao Pe. Válber de que tenha muito sucesso em seu trabalho missionário.
Desde o início de sua formação redentorista, Pe. Válber
Dias Barbosa atua como missionário de Cristo entre os povos indígenas.
Inspirado nessa missão, lançou recentemente o livro “Os Krahô no
contexto da questão cultural indígena”.
De cunho político- antropológico, a obra também disserta sobre cultura
de massas, ecologia e religiosidade dos povos autóctones. Padre Valber
viveu cerca de 14 anos junto aos índios Krahô no Estado do Tocantins e o
livro é resultado desta experiência.
Nessa entrevista, Pe. Válber
partilha sua trajetória e experiência com os índios.
Há quantos anos o senhor participa de missões entre os indígenas? Como o senhor é conhecido entre eles?
Pe. Válber: Penso que a maioria das pessoas ou, pelo menos, os
mais antigos já sabem essa estória de frente para trás e de trás para
frente. Contudo, acredito que haja muitas pessoas novas ou que não
tenham tido oportunidade de ler sobre isso. Para estes, então, não me
recuso a repetir minha trajetória indigenista. Ainda no meu tempo de
diaconato, que foi bastante longo, fiz um estágio de três meses na
Missão Anchieta dos Padres Jesuítas, no Mato Grosso. Em seguida,
participei, por cerca de quatro anos, de vários serviços à Igreja
missionária indigenista, executando funções para o CIMI (Conselho
Indigenista Missionário). Depois de uma parada de alguns meses para a
ordenação presbiteral e de um ano – já como padre – a serviço do
Secretariado Nacional das Ligas Católicas, abracei minha missão,
propriamente, entre os indígenas, na região norte do então Estado de
Goiás, depois separando-se essa região como Estado do Tocantins, missão
essa que durou vinte anos. Desde o ano 2000, não estou mais diretamente
nessa missão, mas dela nunca me desliguei completamente.
Entre os índios Krahô, onde recebi o nome de “Kontxóa” , bem como para
toda a nação Mehi, à qual pertencem os Krahô, é o nome pelo qual sou
conhecido. Entretanto, entre os Apinajé, no Bico do Papagaio (extremo
norte de Tocantins), onde fiquei por algum tempo, fui chamado
simplesmente de “Padre Krahô”.
Hoje em dia, o senhor ainda mantém contato com o povo indígena?
Pe. Válber: Sim, mas são contatos eventuais. A última vez que fui até uma das aldeias onde morei foi em julho/2010.
O senhor sempre se dedicou à preservação e divulgação da cultura e da espiritualidade indígenas?
Pe. Válber: Sim, essa preocupação sempre esteve presente desde o
começo, fazendo parte da minha dedicação ao serviço da causa indígena.
Com relação especificamente à espiritualidade indígena, apresentei uma
dissertação sobre esse assunto no Congresso “Brasil-Alemanha nos 500
anos”, ao final da década de 90, que despertou muito interesse. Resolvi,
então, dar mais atenção a esse assunto. Só que saí da aldeia pouco
tempo depois. Eu não tenho o direito de generalizar para todas as
Culturas Indígenas; sempre estou falando especificamente de uma cultura
bem definida; então, falando de uma Cultura que conheço um pouco, penso
que posso assim afirmar: a espiritualidade é o cerne da Cultura
M?j?-Krahô, em que há uma, como que, exacerbada busca da perfeição na
vida comunitária. Até que seria bom e poderia escrever um pequeno
trabalho sobre o assunto; porém, antes, é melhor ver o que acontece com o
que acabou de aparecer, isto é: “OS KRAHÔ no Contexto da Questão
Cultural Indígena”. De outro lado, no momento, o processo de
deterioração da Cultura é tão violento, tão rápido que dá pra perder um
pouco a motivação de escrever sobre o que estaria se transformando
apenas numa memória. Talvez, antes de escrever, a questão seria muito
mais de desenvolver um trabalho intenso, algum esforço a mais, ainda no
sentido de buscar uma situação de preservação do que for possível. Nesse
caso, escrever um livro sobre o que estou considerando como sustentação
principal da Cultura ajuda um pouco, mas não me parece ser prioritário.
Como é evangelizar o povo indígena?
Pe. Válber: Dom Luciano Mendes de Almeida, em 1986, refletindo as
conclusões do Encontro de Bogotá, disse assim: “Não podemos anunciar
uma Boa Notícia aos povos indígenas a partir da cultura dominante. Temos
de evangelizar os povos indígenas a partir do seu chão cultural e da
sua história”. A enculturação da fé, segundo João Paulo II, só
acontecerá como a “encarnação do Evangelho nas culturas autóctones e, ao
mesmo tempo, a introdução destas culturas na vida da Igreja” (Slavorum
Apostoli, nº21). Mas os livros de cabeceira para a missão indígena são,
especialmente, a “Evangelii Nuntiandi” e as conclusões de Medellín e
Puebla, que complementaram especificamente para a América Latina os
princípios emanados dessa encíclica de Paulo VI. Mas esses enunciados
precisam aterrizar e ser acrescidos de outros conhecimentos e,
sobretudo, de atitudes antropológicas, para que, ao pisar no chão
indígena, a gente não seja nem como astronauta caindo sobre ele com os
mesmos erros dos tempos coloniais nem como quem funciona ao modo de uma
caixa de ressonância. O encontro com o índio tem que ser realista e
afetuoso. Então, traduzindo isso de uma forma compreensiva, atual e
concreta, apresento (em alguns pontos subsequentes) a questão do jeito
como a processei na vida de missão indígena.
É indispensável se apresentar à comunidade indígena com todo o respeito e
muita humildade, fechando os olhos ao que não pareça certo à primeira
vista, não se apressando de forma alguma em fazer interpretações antes
de conhecer bem, preocupando-se desde o primeiro momento em apoiar
decididamente a luta de sobrevivência, não só física, mas,
principalmente, cultural do povo indígena, convencido de que Cultura é
vida.
Há que se reforçar a crença indígena no Deus criador, à luz do seu
próprio mito da criação e descobrir o que marca a vida indígena em
relação à presença continuada de algum toque espiritual mantenedor da
obra criadora, especialmente na bondade do ser humano, isto é, do Mehi –
que o divino Criador (para o Krahô “Pyt”) quer vivo e feliz, que o
será, mais facilmente, à sua maneira e não ao modo do “Branco”.
Há que se valorizar, com gestos concretos de participação efetiva, a
vida comunitária do povo indígena. Mostrar-se a ele não como quem manda
nem como quem vai para ensinar, mas como quem sinceramente se propõe a
escutar, a aprender, a dialogar. É preciso converter-se ao índio, à sua
Cultura, aos seus valores éticos e de comunhão com a natureza.
Evangelizar um povo indígena é se deixar evangelizar por ele, sabendo
descobrir o Deus encarnado nesse povo, que não precisa da gente para ser
salvo, mas para se colocar a serviço da sua vida, dentro da sua
Cultura, enquanto fonte de vida e de harmonia com o universo, através do
qual o Espírito Criador e mantenedor de todas as coisas se comunica ao
povo indígena, confirmando-o na vivência da sua própria cultura.
É só caminhando junto com o povo indígena, comungando sua história,
conhecendo sua realidade, respeitando profundamente seu modo de vida e
seus valores, especialmente os valores comunitários e espirituais, é que
se alcançará descobrir as sementes do Evangelho e do Reino de Deus lá
escondidas. Há que se abrir o pensamento e o coração para perceber, como
instrumento do Deus vivo para anunciar libertação e recuperação, que o
Reino de Deus está lá, pois, Alguém – como seja, inspirando os sábios
antigos daquele povo, verdadeiros profetas - já esteve por lá antes da
gente!
Quando o povo indígena, que tem sido, historicamente, enganado e
explorado, perceber e sentir que a gente é por ele, de fato e de
verdade, sem mostrar nenhum interesse econômico ou de poder, é sinal de
que, junto com o próprio índio, se estará sendo instrumento de
evangelização para o mundo.
O que pode destacar sobre sua experiência em missão indígena?
,b>Pe. Válber: Olha, eu não estou preparado para dar uma resposta
imediata e pronta a essa pergunta. Eu precisaria, sim, fazer uma
reflexão mais demorada sobre o conjunto de toda a minha experiência em
missão indígena, para poder pontuar sucintamente alguns aspectos mais
importantes, que a meu ver mereçam destaque. Posso dizer com lástima
que, de modo geral, os indígenas (os que ainda vivem, mais ou menos,
dentro de seus padrões culturais) não se sentem acolhidos pela
organização da Igreja e, principalmente, pela Igreja-Povo. Na minha
experiência, pude constatar fatos como de bispo acolhedor aos índios,
enquanto a maioria de seus diocesanos, não; de párocos serem acolhedores
e os agentes pastorais, não; de bispo acolhedor não ser nem um pouco
acompanhado pelo seu clero; na verdade, as aberturas surpreendentes de
muitas conclusões de assembleias eclesiásticas e de documentos
pontifícios ou episcopais não foram, no seu conjunto, levadas à prática
pelos agentes ou evangelizadores e, principalmente, não foram
assimiladas pelos leigos, em geral.
Não só em relação aos Krahô, mas com todos os povos indígenas que tive a
oportunidade de contatar, salta logo aos olhos que essa gente é
impressionantemente tolerante e respeitosa.
Um dos momentos em que me senti muito bem foi quando, numa certa noite,
um índio, que tinha voltado da cidade bêbado, andava pela aldeia falando
e cantando, até que soltou este desabafo: “Não fiquem esperando muita
coisa do Padre Valber, não adianta, vão perder tempo, porque ele é pobre
que nem nós mesmos”.
Durante muito tempo, a população de uma cidade vizinha à área indígena
não se convencia de que eu fosse padre de verdade; achavam que “padre”
fosse apenas um apelido meu. Havia quem assim falasse o que um dia
chegou aos meus ouvidos: “Se fosse mesmo padre, de certo não estaria no
meio dos índios”.
Uma coisa que pode desmanchar qualquer projeto e prejudica qualquer
coisa que se faça pela preservação cultural ou o que quer que se faça em
benefício do índio é o alcoolismo.
Qual a principal marca da espiritualidade Krahô?
,b>Pe. Válber: A principal marca da espiritualidade krahô é a busca
da boa convivência e da paz. A construção de uma convivência pacífica,
que busca incansavelmente a alegria de viver. Sua história e o seu
próprio jeito de ser mostram que nunca foi um povo guerreiro; isso não
faz parte de seu modo de ser convivente e tolerante. A Cultura Krahô é
muito nitidamente uma cultura de paz. A vida comunitária na aldeia, com
empenho em desbastar toda e qualquer aresta nas relações sociais,
alcançou um nível incrivelmente alto de boa convivência, com muito
respeito e sensibilidade no trato entre as pessoas.
Em quais aspectos a sua formação na Vida Religiosa Consagrada contribuiu para a convivência junto à tribo Krahô?
Pe. Válber: A formação para a vida comunitária religiosa
contribuiu, sem dúvida, como uma preparação para a convivência na aldeia
krahô. Assim também, o desprendimento exigido pela Vida Consagrada.
Entretanto, no aspecto da privacidade, encontrei dificuldade ao me
inserir numa comunidade indígena, onde a privacidade, como um direito,
só existe para o casal (esposo e esposa); o indivíduo deve estar
constantemente em regime coletivista. Isso é muito difícil para nós,
mesmo sendo religiosos, com toda a preparação e experiência de regime
comunitário. Tive de desenvolver muito esforço nesse sentido, para me
adaptar ao “comunitarismo” krahô, que envolve de tal modo a sua vida, o
seu modo de ser que o krahô se torna incapaz de viver sozinho. O
isolamento é o maior castigo que possa lhe suceder, não tanto a falta de
liberdade, a que ele consegue muito mais facilmente se acomodar.
Porque resolveu relatar em um livro a experiência e cultura indígenas?
Pe. Válber: O livro não relata propriamente a missão indígena
junto aos Krahô, mas, sim, o histórico de seu contato com a sociedade
nacional e os seus traços culturais. Ao longo dos anos de vivência junto
aos Krahô, fui acumulando alguns conhecimentos a cerca da cultura; além
disso, o escrever sobre essa cultura, para mim, é mais um modo de
valorizar essa cultura, lutar por sua preservação e mostrar minha imensa
admiração por ela, além de trazer isso ao conhecimento de muitos,
principalmente dos que não teriam acesso a outras literaturas similares.
A maioria das literaturas, no campo da antropologia indigenista, só
atinge um público mais especializado, pois são literaturas consequentes
de teses de mestrado e doutorado em antropologia. Há também algumas
literaturas que não demonstram um suficiente conhecimento daquilo sobre o
que se está escrevendo, muita coisa não correspondendo à verdade ou à
realidade. Posso dizer também que, tendo a oportunidade de conhecer com
mais profundidade uma beleza tal de modo de vida, a gente fica com uma
certa obrigação de passar isso para frente, para a edificação dos que se
libertam do preconceito racial e cultural.
Na sua opinião, após todos esses anos de dedicação e convivência com
os índios, de que forma a Igreja pode acolher melhor esse povo?
Pe. Válber: Diríamos melhor, acolher “esses povos”, no plural,
pois, além das diferenças culturais entre os diversos povos e línguas,
há também a diferença regional e vários níveis ou estágios de
aculturação ao modo de vida do “branco”. A forma de acolher deve levar
em conta as diferenças. Entretanto, é essencial que na Igreja, para ela
ser acolhedora às populações indígenas, haja uma derrubada pra valer dos
preconceitos subsistentes, haja respeito sincero ao índio como outro,
como diferente de nós e com outro modo de pensar as coisas, de pensar a
vida, de pensar a história, de pensar o trabalho etc., não se
dispensando, em nenhuma hipótese, a abertura de coração, para amar de
verdade essa gente e humildade a ponto de descobrir e reconhecer seus
valores, inclusive morais e, até, evangélicos.
Como o senhor vê o povo indígena no futuro?
Pe. Válber: Com os distúrbios climáticos e a frequência e
gravidade sempre maiores das tragédias ambientais, a humanidade se
coloca muitas interrogações a seu próprio futuro. Por sua vez, a vida
das comunidades indígenas está sendo devassada, escarafunchada e virada
do avesso, desrespeitosamente, sem que esta civilização de que fazemos
parte tenha nada de melhor para essas populações. De outro lado, as
Culturas indígenas já não usufruem mais do direito de viver de acordo
com suas tradições (que lhes foi garantido pela Constituição de 1988).
Então, o futuro não está sorrindo, de forma alguma, para os povos
indígenas do Brasil; a não ser que a própria natureza (no
desenvolvimento do projeto divino), através das próprias tragédias
ambientais, lhes faça justiça.