PADRE RAFAEL VIEIRA CSsR
As cinqüenta e uma cidades brasileiras que estão, nestes dias, recebendo a tocha dos jogos pan-americanos do Rio de Janeiro também estão assistindo a um rito que remonta a Grécia clássica. Na mitologia, o deus que ousou roubar fogo de Zeus, o chefe dos deuses, para dar aos homens com o propósito de que pudessem evoluir e se distinguirem dos animais tem o nome de Prometeu. Pagou caro pela aventura. Foi acorrentado por 30 mil anos tendo de suportar, todos os dias, que uma águia viesse lhe devorar o fígado que se regenerava cotidianamente. O fogo, para os gregos, era algo sacratíssimo. Os sacrifícios a Zeus sempre eram feitos com fogo e, no final de jogos comunitários, o atleta vencedor de uma corrida até o altar onde se encontravam os sacerdotes, poderia carregar uma tocha que serviria para acender o fogo dos sacrifícios oferecidos a Zeus. Dessa cena do mundo imaginário religioso antigo de Atenas saiu o rito da corrida com tochas que atravessou os séculos e hoje é repetido para lembrar aos brasileiros o início dos jogos entre países da América.
A primeira capital brasileira a ver a corrida com a tocha do Pan foi Goiânia, a cidade onde moro. Aqui, a cerimônia foi realizada nos moldes da passagem da tocha no Rio antes da Olimpíada de Atenas de 2004. Um grupo de 80 pessoas de notoriedade a conduziu num percurso de 32 quilômetros. Cada uma carregava o símbolo dos jogos por 400 metros. A composição desse grupo revela uma inconsciente fidelidade à lenda grega. Todos os escolhidos são vencedores, de alguma forma. O trajeto iniciado pelo prefeito da cidade, seguido por atletas aposentados, jornalistas famosos, autoridades militares, figuras expressivas do comércio e da indústria foi concluído pelo campeão de judô Lhofei Shiozawa. A cidade representa a República Dominicana, uma das nações participantes dos jogos.
Dois condutores da tocha em Goiânia chamaram a atenção pelo tipo de vitória que os credenciaram a entrar no grupo. O primeiro foi o garoto de 13 anos, Aurélio Povoa, vencedor de um concurso promovido pela Rede Globo para desafiar estudantes a soletrar de forma correta. Aluno de escola pública no interior do Brasil, o menino tem sido tratado como uma celebridade por essas bandas de cá. Quase toda semana aparece nos jornais participando de algum evento importante na companhia de autoridades. Soletrar é uma tarefa que era considerada, no meu tempo de escola fundamental, sem grande importância. Talvez porque quem não soubesse realizá-la simplesmente não passava de ano. Se hoje em dia um campeão no soletrar ganha tanto espaço nas homenagens é porque algo muito grave e negativo está ocorrendo na base da educação brasileira. Em todo caso, o sucesso do menino, certamente, corresponde ao espírito que dava o privilégio aos atletas gregos nas liturgias de sacrifício ao deus dos deuses.
O outro felizardo a receber e conduzir a tocha na cidade foi o folclórico jogar de futebol que tem no registro de nascimento o nome de Túlio Humberto Pereira da Costa, apelidado pela torcida do Botafogo como Túlio Maravilha. Esse rapaz é hoje, um emblema que reúne decadência profissional, força de vontade, faro de marketing e muita disposição de continuar sendo notícia. Os jornais locais têm mostrado sua determinação em também ele chegar ao gol mil. Sem os holofotes da grande mídia para contar seus feitos e dar cobertura no seu intento, ele correu sorridente toda parte que o lhe coube na fila dos imitadores dos gregos. Entendo pouco de cultura clássica, mas conheço a fama do escritor grego Ésquilo, o autor da história de Prometeu e de seu roubo do fogo. Ele entendia que um autor deve ser sempre um educador. Se a vitória nos jogos no Monte Olimpo dava o direito de conduzir a tocha até o altar de Zeus, as escolhas atuais para a movimentação em torno do evento pan-americano do mês de julho estão possibilitando uma revisão do conceito. Ser vitorioso, na verdade, não significa que é preciso ter a última palavra no campeonato e nem que tenha realizado partidas primorosas. Ser vitorioso é saber soletrar. Ser vitorioso é não sucumbir diante da perversidade da indústria de celebridades a ponto de insistir, a todo custo, de que continua sendo uma maravilha do futebol mesmo tendo atravessado uma carreira de sucesso e estar defendendo, hoje, as cores de um time goiano que, há muitos anos, não conhece sequer as glórias de fazer parte da lista de clubes que disputam a serie A do campeonato Brasileiro.
Pe. Rafael Vieira, CSsR/ 11.06.2007
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