II
REFUTAÇÃO DOS ERROS OPOSTOS À VIRGINDADE E AO CELIBATO
31. Esta doutrina da excelência da virgindade e do celibato, e da superioridade de ambos em relação ao matrimônio, tinha sido declarada, como dissemos, pelo divino Redentor e pelo apóstolo das gentes; do mesmo modo foi também definida solenemente no concílio Tridentino como dogma de fé, e comentada sempre unanimemente pelos santos padres e doutores da Igreja. Além disso, os nossos predecessores e nós próprio a explicamos muitas vezes e recomendamos insistentemente. Mas, perante recentes ataques a esta doutrina tradicional da Igreja, e por causa do perigo que eles constituem e do mal que produzem entre os fiéis, somos levado pelo dever do nosso cargo a desmascarar nesta encíclica e a reprovar de novo esses erros, tantas vezes propostos sob aparências de verdade.
A castidade não é nociva ao organismo humano
32. Primeiramente, apartam-se do senso comum, a que a Igreja sempre atendeu, aqueles que vêem no instinto sexual a mais importante e mais profunda das tendências humanas, e concluem daí que o homem não o pode coibir durante toda a sua vida sem perigo para o organismo e sem prejuízo do equilíbrio da sua personalidade.
33. Ora, segundo a acertada observação de santo Tomás, a mais profunda das inclinações naturais é o instinto da conservação: o instinto sexual não vem senão em segundo lugar. Além disso, compete à razão, privilégio singular da nossa natureza, regular essas tendências e instintos profundos e, por meio da direção que lhes dá, enobrecê-los.
34. Infelizmente, depois do pecado de Adão, as faculdades e as paixões do corpo, estando alteradas, não só procuram dominar os sentidos mas até o espírito, obscurecendo a razão e enfraquecendo a vontade. Mas é-nos dada a graça de Cristo, especialmente nos sacramentos, para nos ajudar a manter o nosso corpo em servidão e a viver do espírito (cf. Gl 5,25;1Cor 9,27). A virtude da castidade não exige de nós que nos tornemos insensíveis ao estímulo da concupiscência, mas que o subordinemos à razão e à lei da graça, esforçando-nos, segundo as próprias forças, por seguir o que é mais perfeito na vida humana e cristã.
35. Para conseguir, porém, o domínio perfeito do espírito sobre a vida dos sentidos, não basta abstermo-nos apenas dos atos diretamente contrários à castidade, mas é absolutamente necessário renunciar com generosidade a tudo o que ofende de perto ou de longe esta virtude: poderá então o espírito reinar plenamente no corpo e ver a sua vida espiritual em paz e liberdade. Quem não verá, à luz dos princípios católicos, que a castidade perfeita e a virgindade, bem longe de prejudicarem o desenvolvimento normal do homem e da mulher, os elevam pelo contrário à mais alta nobreza moral?
A santificação não é mais fácil no matrimônio que na virgindade
36. Reprovamos recentemente com tristeza a opinião que apresenta o casamento como meio único de garantir à personalidade humana o seu desenvolvimento e a sua perfeição natural. Alguns afirmam, de fato, que a graça, comunicada ex opere operato pelo sacramento do matrimônio, santifica o uso do casamento a ponto de o tornar instrumento mais eficaz que a mesma virgindade para unir as almas a Deus, porque o casamento cristão é um sacramento, mas não o é a virgindade. Nós declaramos porém essa doutrina falsa e nociva. Sem dúvida, o sacramento concede aos esposos a graça de cumprirem santamente o dever conjugal e reforça os laços do afeto recíproco que os une; mas não foi instituído para fazer do uso do matrimônio o meio mais apto, em si, para unir com o próprio Deus a alma dos esposos pelos laços da caridade. Quando o apóstolo são Paulo reconhece aos esposos o direito de se absterem algum tempo do uso do casamento para se entregarem a oração (cf. l Cor 7,5), não é exatamente porque tal renúncia torna a alma mais livre para se dar às coisas divinas e orar?
37. Finalmente, não se pode afirmar, como fazem alguns, que "a ajuda mútua", que os esposos procuram no matrimônio cristão, é ajuda mais perfeita para conseguir a santidade do que a apregoada solidão do coração das virgens e dos continentes. Pois, não obstante a renúncia a tal amor humano, não se pode dizer que as pessoas, que abraçam o estado de perfeita castidade, empobrecem por isso mesmo a sua personalidade humana. De fato, recebem do próprio Deus um socorro espiritual muito superior à "mútua ajuda" prestada pelos cônjuges entre si. Dedicando-se completamente àquele que é seu princípio e lhes dá a participação da sua vida divina, longe de se diminuírem a si mesmos, só se engrandecem o mais possível. Quem, com mais verdade que os virgens, pode aplicar a si aquelas admiráveis palavras do apóstolo são Paulo: "Vivo, já não eu, mas é Cristo que vive em mim"? (Gl 2,20).
38. Por esse motivo, a Igreja mantém sapientissimamente o celibato dos padres; sabe que ele é e há de ser fonte de graças espirituais e de união com Deus, cada vez mais íntima.
O apostolado não é mais eficaz no matrimônio do que na virgindade
39. Parece-nos útil dizer também alguma coisa dos que apartam a juventude dos seminários e institutos religiosos, esforçando-se por incutir a idéia de que hoje a Igreja tem maior necessidade do auxílio e da profissão da vida cristã dos casados, vivendo no século como os demais, do que dos sacerdotes e das religiosas, que por assim dizer se separaram do mundo pelo voto de castidade. Semelhante idéia, veneráveis irmãos, é completamente falsa e muito perniciosa.
40. Não é certamente intenção nossa negar a fecundidade do testemunho que os esposos católicos podem dar, com o exemplo da vida e a eficácia da virtude, em todos os lugares e circunstâncias. Mas invocar esse motivo para aconselhar que se prega o matrimônio à consagração total a Deus é inverter e transtornar a reta ordem das coisas. Muito desejamos, veneráveis irmãos, que não só se ensinem a tempo aos já casados ou aos noivos os deveres de pais e mães, mas que se esclareçam também sobre o testemunho que devem dar aos outros da sua fé e do exemplo das suas virtudes. Mas, como o exige a consciência do nosso dever, não podemos deixar de reprovar em absoluto os maus conselheiros, que apartam jovens de entrarem nos seminários ou na vida religiosa, sob o pretexto que farão maior bem como pais ou mães de família, professando a vida cristã publicamente à vista de todos. Melhor fariam tais conselheiros exortando as inúmeras pessoas casadas a cooperarem nas obras de apostolado, do que teimando em apartar da virgindade os poucos jovens que desejam consagrar-se ao divino serviço. A esse propósito lembra santo Ambrósio: "Sempre foi próprio da graça sacerdotal lançar a semente da integridade e excitar o amor da virgindade".
41. Também julgamos dever notar que é completamente falso dizer que as pessoas que professam castidade perfeita, deixam, em certo modo, de pertencer à comunidade humana. As religiosas que dedicam a vida toda a servir os pobres e os doentes, sem distinção de raça, de categoria social ou religião, acaso não se associam intimamente a essas desgraças e dores, e porventura não se compadecem delas como se fossem verdadeiras mães? E o sacerdote não é o bom pastor, que, a exemplo do divino mestre, conhece as suas ovelhas e as chama pelos seus nomes? (cf. Jo 10,14;10,3). Ora foi exatamente a castidade perfeita que permitiu que esses sacerdotes e religiosos, e essas religiosas, pudessem se dedicar a todos e amar a todos por amor de Cristo. E também os contemplativos e contemplativas, oferecendo a Deus as suas orações e a sua própria imolação pela salvação do próximo, contribuem muito para o bem da Igreja; mais ainda: como nas circunstâncias presentes se dão ao apostolado e às obras de caridade, segundo as normas estabelecidas pela nossa carta apostólica Sponsa Christi, merecem todo o louvor por este novo motivo; nem podem ser considerados como estranhos à sociedade humana, pois trabalham desses dois modos para o bem espiritual dela.
segue...
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