Luís Guerreiro Pinto Cacais nasceu em Gondarém, Vila Nova de Cerveira, em 8 de julho de 1929, filho de Domingos Pinto Cacais, pedreiro, e de Maria da Purificação Guerreiro, mulher do campo. Era o mais velho de quatro irmãos, três rapazes e uma rapariga, e é o único que ainda vive. Antes de entrar no seminário, foi ajudante de pedreiro e de pintor. No ano de 1943, ingressou no Seminário Menor Redentorista em Vila Nova de Gaia. Fez a profissão religiosa em Espanha em 1949 e lá continuou os estudos de Filosofia e Teologia. Ordenou-se em 1956. Regressando nesse ano a Portugal, foi, primeiro, professor do Seminário Menor, depois, seu Reitor e Diretor, e, mais tarde, em 1964, Diretor do Seminário Maior, em Castelo Branco. Em 1963, estudou Pedagogia e Meios de Comunicação Social em Roma. Em 1967, foi enviado como Vice-Provincial para as missões redentoristas de Angola, onde trabalhou até 1974, ano em que deixou o sacerdócio, vindo então para o Brasil, Brasília. Aqui, formou-se ainda em Administração, trabalhou sete anos numa empresa de construção e foi tradutor independente. Por fim, e após dez anos como administrador financeiro do Goethe-Intitut de Brasília, aposentou-se. Hoje, escreve.
1. Uma das características mais fortes dos personagens dos seus romances – inclusive do professor Teodoro Chitunda e do jovem Deo – é o idealismo que se mistura com uma certa faceta sonhadora, poética, filosófica e mística. No homem Luís, isso ainda hoje diz alguma coisa? E o octogenário permanece ainda sonhador?
R: Sim, o octogenário continua ainda idealista e sonhador. Aliás, ele continua o mesmo que era e sempre foi. No âmago de si mesmo, há algo que não conheceu o tempo, o passar dos anos, o envelhecimento, as mudanças, e que parece eterno: uma experiência vital surpreendente que ele tenta expressar no livro “Entardecer”, pág. 24. São os sonhos que o projetam para além do momento presente: os sonhos são fatores importantes do caminhar da história.
2. Creio que não seria demais apelar para uma reminiscência dos seus primeiros anos de formador da juventude e perguntar: o que era, naquela altura, ser semeador de sonhos?
R: Quando, recém-ordenado na Espanha, cheguei em 1956 como professor ao Seminário Menor, em Portugal, a direção tinha sido confiada, pela primeira vez, a um confrade português, vindo de Lovaina. Bem preparado, ele cuidou de romper com os velhos métodos de educação e de humanizar a instituição. Convidado para seu adjunto, eu pude, durante cinco anos, exercer uma ação educativa que, segundo parece, deixou marcas positivas e duradouras, não só nos que chegaram ao sacerdócio como nos que seguiram outros rumos e são hoje professores, advogados, juízes, empresários, etc. A muitos deles eu havia de os reencontrar em 1962, quando me nomearam reitor e diretor do Seminário Menor, e também, ainda depois, em 1964, quando fui o primeiro diretor do Seminário Maior em Portugal, acabado de inaugurar.
3. O mestre poderia comentar o fascínio que exercia sobre os seus discípulos, o qual – no “Entardecer” – vem descrito com rasgos de humanidade?
R: Desse fascínio só os discípulos poderiam falar. Fizeram-no em 1996, quando, tendo eu andado distante por mais de vinte anos, um grupo se reuniu num restaurante de Lisboa para de novo se encontrar comigo. Foi aí que, pela primeira vez, ouvi tratarem-me por “mestre”, conforme se lê em “Entardecer”, pág. 68. Tal veneração jamais esmoreceu. E tantos anos se passaram! Em julho deste ano, estando eu em Portugal, um grupo significativo quis festejar comigo os meus oitenta anos, num restaurante perto da minha terra. Vieram de Lisboa, do Porto e de outros lugares, alguns bem distantes. Juntaram-se quarenta e uma pessoas, num almoço memorável, com muitos discursos, alegria e momentos de emoção.
É difícil entender tanto apreço. É verdade que exerci o sacerdócio com grande entrega. Como educador, fui sobretudo um companheiro. E sonhei coisas belas e generosas com a juventude que me tinham confiado. Fui justo, amigo, verdadeiro e igual para com todos. Fui liberal, confiei na liberdade e responsabilidade de cada um. Estaria nisso o meu fascínio? Tenho a impressão de que, com o andar do tempo, me transformaram num pequeno mito, não propriamente pelo que fui, fiz ou disse, mas, certamente, por representar ou sintetizar algumas das suas melhores aspirações.
4. O despertar do papel dos leigos e de outros líderes nativos na Missão de Menongue, em Angola, teria na projectada Escola a sua pedra fundamental? E porque tão tardiamente?
R: Muito antes do despertar do papel dos leigos na Igreja, a evangelização de Angola e de outros países africanos era obra fundamentalmente de catequistas. Foram eles os heróis, tanto nos tempos de paz como nos tempos de guerra. Só eles conheciam as línguas, a cultura e a alma das diversas tribos e só eles eram capazes de realizar a inculturação da mensagem evangélica. Foi por isso que muitas Missões criaram escolas para a formação e aperfeiçoamento destes incomparáveis obreiros. Ao criar a sua, ainda no rescaldo do Vaticano II, os Redentoristas adotaram um programa ambicioso que, mais tarde, se revelaria quimérico: a escola abrangia toda a família do catequista e preparava-a, não só para a tarefa do Evangelho, mas também para ser fator de promoção humana no seu meio. Bem preparados, os catequistas poderiam vir a ser (e porque não?) os futuros padres das comunidades africanas.
5. Nos seus livros, as mulheres – não só as angolanas, Rosália, Amélia, Júlia, mas também Reingard, Ruth e Susana – aparecem com um traço comum: realismo, pés no chão, vivência do presente. Terá sido isso pura idealização do ficcionista ou uma percepção madura que ainda permanece no octogenário?
R: Em “Caminhos de Liberdade e Solidão”, que comecei a escrever em 1974, quando deixei o ministério, está bem claro que, por muitos anos, embora me atraísse, a mulher era espaço vazio na minha história. Quando reparei que ela caminhava ao meu lado e que a sua presença, em vez de estorvo, era uma força potencializadora, não abdiquei mais dessa revelação. A mulher tem limitações como tudo o que é humano. Mas, tendo-a como companheira de viagem, habituei-me a olhar para os seus aspectos positivos, para a sua capacidade de surpreender a cada dia que passa, para o seu sentido das realidades concretas, para o cuidado que põe nas pequenas coisas, nos pormenores (afinal são estes que nos fazem felizes ou infelizes), para os seus sentimentos. Sim, o octogenário mantém uma grande admiração pela mulher e lamenta que, por via duma ideologia patriarcal persistente, ela não partilhe ainda, em igualdade com o homem, do poder e das grandes decisões. A história não seria tão cruel e violenta. Seria muito mais humana.
6. O retrato que o escritor pinta da Igreja hierárquica católica, seja através do narrador de “Caminhos de Liberdade e Solidão”, seja nas confidências de Ricardo, em “Entardecer”, parece sombrio, cheio de decepções e amarguras. Em que é que o Vaticano II de João XXIII o ajudou nessa crítica?
R: Concordo com esse quadro sombrio. Interrogo-me, por vezes, se ele não será fruto de um ressentimento acumulado. Eu era padre. Casei. A Igreja reduziu-me à condição de subleigo, uma decisão que mais parece vingança. Condenei o ato, mas, a nível consciente, jamais quis dar o troco. A explicação deve ser outra.
Quando do Vaticano II, eu era um padre jovem, estudei em Roma e deixei-me embalar, como tantos, com a perspectiva de uma Igreja diferente, renovada, mais viva, e isso não aconteceu. O paquiderme não sentiu ou ignorou a passagem da aragem do Espírito. Em vez de uma Igreja participativa, de irmãos, mais consentânea com o Evangelho, ela continuou submissa a um monarca absoluto, dogmático, infalível, monopolizador do Espírito. Os fiéis são os que quase divinizaram o Papa e obedecem cegamente, como eternas crianças. Os bispos esqueceram-se de que são tão sucessores dos Apóstolos como o bispo de Roma e fazem o mesmo: calam-se e obedecem; sob pretexto de preservar a unidade, parecem não notar que o que está em causa muitas vezes é a verdade. A Igreja-instituição, que a princípio adotou como adequados os modelos do poder secular, recusa-se agora, na era da democracia e dos direitos humanos, a acomodar-se às formas participativas do mundo atual, muito mais próximas dos ideais do Evangelho. A Igreja da dominação e do poder não é a Igreja que Jesus sonhou. De aí, penso eu, a minha visão sombria. Mas quero confessar, com um colega inglês que escreveu um livro sobre o lado obscuro do papado, que as minhas críticas “são obra de um amigo, não de um inimigo”.
7. Frequentemente, o tema da liberdade e da libertação aparece entremeado no enredo dos seus livros. Estaria aí, no fundo, um novo tipo de teologia que – na América Latina – prosperou como crítica social e causou tanto impacto no trabalho de base? Havia algum eco disso em Portugal e Angola?
R: Penso que esse tema é mais visível em “Caminhos de Liberdade e Solidão” e emerge da situação contextual que eu então vivia: abandono do sacerdócio, com a consequente quebra de alguns vínculos que me ligavam à Igreja, em meio de uma guerra em que os africanos buscavam libertar-se da sujeição colonial. Era a época em que acontecia a Conferência Episcopal de Medellín e que surgiam os primeiros esboços da Teologia da Libertação, 1968 a 1973. O Vaticano II acontecera um pouco antes e provocava também em África impulsos de recusa a todo o tipo de servidão.
8. É bem interessante, em “Impossível Regresso”, a consciência da abjeção do preto, expressa na conversa de Teodoro com as suas filhas, que rejeitam precisamente esse sentimento de inferioridade. Como é que o escritor Luís Guerreiro, hoje radicado no Brasil, vê o problema das quotas para pretos nas nossas universidades?
R: Com as quotas, o Brasil tenta resgatar, de algum modo, séculos de escravidão, cujas sequelas continuam ainda visíveis. Mas, com elas, está a declarar implicitamente que os pretos não são capazes de se valerem por si próprios. E isso é humilhação. Tenho visto pretos mais esclarecidos que rejeitam tal favor.
9. Como é que o humanista Luís Guerreiro veria a possível colaboração da Igreja Católica do Brasil com a evangelização na África?
R: Eu só conheço Angola, a Angola de outros tempos. Mas acompanho, na medida do possível, o que lá está acontecendo agora. Angola não é o Brasil. Há muitas diferenças em todos os sentidos. Por isso, a melhor colaboração seria, para mim, a do intercâmbio de experiências entre a Igreja de aqui e a de lá. A Igreja do Brasil tem sido, em momentos, uma Igreja sumamente fecunda e criativa. É nesse aspecto que ela podia oferecer à de Angola uma importante contribuição.
10. Nalguns passos das confidências de Ricardo em “Entardecer”, aflora a preocupação com a morte, bem semelhante às posições do filósofo Emanuel Levinas, em “Le temps et la mort”: morte como interrupção de um projeto que fica inacabado. Comente esta ênfase profundamente filosófica do seu personagem.
R: Eu comecei a escrever já muito tarde, quando tive liberdade para o fazer, já numa fase da vida em que é inevitável pensar no fim que se aproxima. Mas a morte nunca me angustiou como interrupção de um projeto inacabado, embora isso possa transparecer no desfecho do meu pequeno romance “Entardecer”. O meu problema filosófico tem girado em torno da sorte futura dessa identidade do ser que, no mais profundo de nós mesmos, nos acompanha desde a infância eternamente inalterado e intocável. É nessa identidade que me parece ver a prova filosófica de que somos imortais.
11. Por fim, mas não menos importante, parece-me constante a questão de uma nova imagem, melhor, de uma nova linguagem para falar de Deus, que vá além de meras expressões metafóricas. Como é que o crente Luís Guerreiro tematiza hoje a sua fé em Deus?
R: No entardecer da vida, o crente Luís Guerreiro tem sido instado, como nunca, a encontrar um suporte ou justificação racional para a sua fé. Não sendo ele dotado de raciocínio analítico, mas intuitivo, as suas conclusões são, em geral, não resultantes de um procedimento silogístico, mas de intuições brotadas da contemplação do todo. Foi assim que a complexidade do cosmos e, principalmente, da vida, o levou a aceitar, sem objeções, um desígnio inteligente, cujo autor conhecemos por Deus. Ele criou o ser humano livre e jamais o quis subjugar com a evidência das suas verdades. Quis que fosse o ser humano a escolher o seu próprio destino. Entretanto, semeou-lhe o caminho de sinais, o maior dos quais foi Jesus de Nazaré, o Cristo. Esses sinais não são demonstrações capazes de nos convencer; são apenas sinais que nenhum ser inteligente devia honestamente desprezar. Ora, é a confiança e a fidelidade a esses sinais o que define a fé do crente Luís Guerreiro.
Entrevista feita por Francisco Salatiel de Alencar Barbosa
Fonte: AAAR-Associação dos Antigos Alunos Redentoristas de Portugal
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