Ficha 37: A Conferência de Medellín (I)
A
Conferência de Medellín foi a segunda Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano e realizou-se na cidade de Medellín, na Colômbia, em
1968, sendo a primeira realizada depois do Concílio, cujo título
expressa sua íntima ligação com aquele evento: “A Igreja na presente
transformação da América Latina à luz do Concílio Vaticano II”, uma
tradução dos documentos do Concílio para a realidade Latino-Americana.
No discurso de abertura o Papa Paulo VI lembrou que ela inaugurava um
novo período da Igreja no Continente[1], o que Clodovis Boff
destaca como uma nova consciência eclesial, isto é, o despertar de
uma Igreja comprometida com a defesa da vida dos pobres. A reafirmação
deste principio eclesial nas subsequentes Conferências Episcopais
confirma a sua importância e singularidade. Os principais temas da
Conferência de Medellín se dividiram em 3 grandes partes: ‘Promoção
Humana’, ‘Evangelização e Crescimento na fé’ e ‘A Igreja Visível e
suas estruturas’. Esta 37ª Ficha aborda o contexto em que surgiu esta
Conferência e sua primeira parte: Promoção humana com os seus subtemas, todos fundamentados nos documentos conciliares de cunho social, especialmente a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), que é tida como a Carta Magna da Doutrina Social da Igreja (DSI) [2]. As Encíclicas Sociais, Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963) de João XXIII, anteriores ao Concílio, e a Populorum Progressio, de Paulo
VI, publicada logo após, em 1967, foram fundamentais para definir a
linha de reflexão dos bispos em Medellín. Especialmente na última, o
Papa retoma a GS e afirma que o desenvolvimento ou o progresso dos povos
depende intrinsecamente dos investimentos sociais dos governos e da
sociedade civil de um determinado país. De forma muito significativa
ele afirmou que o novo nome da Paz era ‘Desenvolvimento’.
Os documentos conciliares e a clara
posição dos papas nas três Encíclicas Sociais acima citadas acabaram
despertando o olhar crítico de setores eclesiais e civis sobre a
realidade social e econômica do Continente, a ponto de fazer surgir uma
clara oposição à teoria econômica desenvolvimentista, sustentada pelos
regimes militares da maioria dos governos [3]. Uma das experiências mais
significativas de engajamento social da Igreja foi realizada pelo
Movimento ‘Ação Católica’ e seus vários segmentos que adotaram a
metodologia do ‘Ver, Julgar e Agir’ e pela Campanha da Fraternidade. O
próprio Documento de Medellín foi elaborado tendo como base esta
metodologia, e os seus 16 tópicos trazem uma leitura da realidade (ver),
uma iluminação a partir dos princípios teológicos (julgar) e as
recomendações e/ou sugestões de aplicação (agir).
Esta efervescência eclesial que iniciou
no Concílio Vaticano II e teve seu ápice em Medellín foi abordada por
teólogos Latino-Americanos, contribuindo para o surgimento da teologia
Latino-Americana que eclodiu, em 1968, com o livro ‘Teologia da
Libertação’ do teólogo peruano Gustavo Gutierrez. Pela primeira vez se
identificava a existência de um pensar teológico a partir dos pobres e
dos despossuídos (aqueles que tinham posses e foram espoliados), vítimas
de um sistema injusto. Segundo esta teologia, a pobreza é um pecado
social que priva milhares de pessoas de uma vida digna e, tal como Jesus
escolheu os pobres, também a Igreja deveria servi-los rompendo com a
tradição de uma Igreja associada aos poderosos do mundo.
Esta reflexão passou a ser cada vez mais
compartilhada por um número significativo de bispos. No discurso de
abertura em Medellín, o Cardeal Juan Landázuri Ricketts, presidente da
Conferência Episcopal Peruana, manifestou que os bispos deveriam passar
a ter duas atitudes a partir de então: ‘saber escutar’ e ‘saber estar
presente’. Segundo ele, ‘saber escutar’ Deus e depois, ‘saber escutar’ a
voz do mundo, considerando-o tal como ele é, pois o Senhor se encontra
no mundo. Saber ‘estar presente’ significa cumprir a responsabilidade
pastoral: identificar-se e comprometer-se com os pobres do Continente,
denunciando tudo o que oprime a pessoa humana [4].
Com relação à primeira parte do Documento, Promoção Humana, o primeiro tópico “Justiça”
afirma que a busca da justiça pelo povo Latino-Americano é uma
exigência evangélica e que a Igreja tem a missão de promovê-la e
defender todos aqueles que dela precisam, bem como colaborar na
organização da classe trabalhadora através da formação. O documento
ainda cita que somente uma reforma política verdadeira e profunda
poderia contribuir para a justiça e o desenvolvimento da América. Como
sugestão pastoral, os bispos lembram a necessidade da criação de
Comissões de Justiça, através de associações com organismos e
instituições civis, e a revitalização de Organismos Pastorais que
ultrapassem a beneficência. Especialmente no Brasil, setores da Igreja
que acolheram Medellín se empenharam na defesa de presos políticos
através de Comitês de Justiça e no empenho em favor dos mais pobres
através da criação das Pastorais Sociais, dentre elas a Pastoral da
Terra, a Pastoral Operária, as Ceb’s e outras.
No segundo tópico, ‘Paz’, seguindo a lógica da Populorum Progressio,
o documento expressa que ‘se o desenvolvimento é o novo nome da paz, o
subdesenvolvimento Latino-Americano é uma injusta situação, promotora de
tensões que conspiram contra a paz’, isto é, os bispos, destacam a
existência de um sistema econômico profundamente injusto, fruto da
herança colonial e da recente exploração pelo sistema capitalista.
Lembram, também, que a estrutura do poder sempre esteve nas mãos dos
detentores do poder econômico que isto acabou gerando um círculo vicioso
que não permitia as mudanças necessárias em favor dos pobres; e que a
Paz, como fruto da justiça, depende do desenvolvimento social sincero e
profundo, possibilitando a plena cidadania do povo. O Documento ainda
destaca que a Paz não é uma ideia ou utopia, mas o resultado de uma
prática social que deve ser construída, cotidianamente, principalmente,
porque a Paz necessária, sob a ótica de comunidade eclesial, não é
aquela que é dada pelo mundo,mas a que vem de Cristo. Como sugestão
pastoral, Medellín destaca o empenho para uma forte conscientização do
povo sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos a ser realizada
através da associação de organismos promotores da vida, especialmente as
Universidades, e pede que as Igrejas cristãs se empenhem na defesa dos
direitos dos pobres e combatam as políticas de defesa que se amparam na
política armamentista.
No terceiro tópico ‘Família e Demografia’
afirma de forma muito clara e lúcida que, como em todo o mundo,
também na América Latina a família passa por sérias mudanças sociais e
religiosas. A Conferência observa que apesar da família moderna passar
por sérias crises, ela é uma instituição importante para o resgate dos
valores humanos fundamentais da vida, como formadora de pessoas e de
novas famílias, e promotora de desenvolvimento. Em defesa da Encíclica Humanae Vitae,
os bispos destacam que o controle da natalidade, praticada em muitos
países, esconde um projeto econômico fundamentado no acúmulo de bens. O
próprio Papa Paulo VI teria afirmado que “não se trata de diminuirmos os comensais, mas de multiplicar o pão”,
ou seja, a Encíclica defende o direito de todos igualmente. Como
orientação pastoral, sugere a criação e a organização da Pastoral
Familiar nas Dioceses.
No quarto tópico ‘Educação’, os
bispos, destacam que só haverá desenvolvimento social e econômico se
houver investimento na educação. Conscientes que o baixo nível de
escolaridade dos jovens está intimamente relacionado à pobreza de grande
parte das famílias Latino-Americanas, o Documento lembra da urgente e
necessária democratização escolar, através da criação de vagas e da
renovação dos currículos. Na linha da Declaração GE,
apela-se para que a educação seja humanista e alicerçada nos valores
cristãos. Por fim, destaca que a escola católica e, especialmente, a
Universidade Católica são importantes espaços para a formação dos jovens
cristãos.
No último tópico, ‘Juventude’, o
Documento reconhece que o contingente de jovens Latino-americanos possui
uma força inigualável, mas lembra o desafio de formá-los
adequadamente.Como sugestão pastoral, os bispos pedem um empenho para a
estruturação da Pastoral da Juventude.
Como Medellín está associada às
discussões sobre pobreza, injustiças sociais e libertação politica e
econômica, esta primeira parte é mais conhecida e também considerada a
mais importante do Documento. Os cinco tópicos abordados contribuíram
para o despertar de muitas Dioceses no que diz respeito à urgente
renovação da Igreja através de uma Pastoral Social engajada e
transformadora. As reflexões e as práticas que dela se efetivaram,
contribuíram para a identidade da Igreja Latino-Americana. Medellín
deve, então, ser entendida como a precursora da Conferência de Puebla
(1979), que explicitou a Opção Preferencial pelos Pobres.
Notas
[1] Discurso de Sua Santidade o Papa Paulo VI na abertura da Segunda Conferência, Petrópolis, Vozes, 1969, 9-13.
[2] Doutrina Social da Igreja (DSI) é a
parte do Magistério (ensinamentos) da Igreja que aborda a prática social
que nasce da fé, que existiram desde os primórdios do Cristianismo, mas
costuma-se datar seu inicio com a Rerum Novarum, de Leão XIII
(1891), quando o papa fixou princípios, critérios e diretrizes gerais a
respeito da relação trabalhador e trabalho. Em 1931, a expressão
“Doutrina Social” aparece na Encíclica Quadragesimo anno e, a
partir daí, se desenvolveu como uma disciplina moral da Igreja. Em 1941,
Pio XII fala em ‘‘Doutrina Social Católica’’ numa rádio mensagem, em
comemoração ao 50º ano da Rerum Novarum, e em 1950, na sua Exortação Apostólica Menti nostrae surge o termo “Doutrina Social da Igreja”, que
é consolidado com o Papa João XXIII em seu Magistério. A Constituição
GS e LG, os Decretos CD, PO, AA, e as Declarações DH e GE, em função
de seus conteúdos sociais, deram grande impulso a DSI. A partir daí,
Paulo VI e, João Paulo II publicaram muitos documentos abordando esta
prática social. Em 2004, todos os Documentos da Doutrina Social da
Igreja foram sistematizados no ‘Compêndio da Doutrina Social da Igreja’.
[3] A teoria Desenvolvimentista
defendia a ideia de que, a partir do crescimento demográfico e dos
investimentos internacionais, os países Latino-Americanos alcançariam um
boom socioeconômico que os tiraria da histórica dependência
econômica, e que era preciso esperar o desenvolvimento e o consequente
enriquecimento dos países para depois haver os investimentos na área
social. A história, porém, mostrou que a riqueza gerada durante o
período desenvolvimentista continuou concentrada nas mãos dos grandes
investidores, e os pobres em pouco ou nada foram beneficiados.
[4] Discurso de Abertura do Cardeal Juan Landázuri Ricketts, Petrópolis, Vozes, 1969, 21-26.
Referências Eletrônicas:
Beozzo, José Oscar, Medellín: inspiração e raízes
Boff, Clodovis, A Originalidade Histórica de Medellín
Comblin, Joseph, Conferência Episcopal de Medellín: 40 anos depois
Raschietti, Estevão, Medellín 40 anos
CELAM, Documento de Medellín
Gravura: En la Cena ecológica del Reino

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