Ficha 14 – A Transmissão da Revelação Divina (2ª DV)
Constituição Dogmática DEI VERBUM
Sobre a Revelação Divina
A décima quarta ficha, segunda da DV, refere-se
ao capítulo II que trata da delicada e importante missão de
interpretar e transmitir a Revelação Divina. Em pleno século XXI, a
mensagem de Cristo continua sendo anunciada segundo o mandamento do
Senhor: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem
discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e
ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei” (Mt 28,19-20a).
Todos aqueles que a transmitem, fazem isso pela fé e acreditam cumprir o
mandamento do Senhor. Todavia, é necessário reconhecer que, ao longo do
tempo, diversas formas de anunciar o Evangelho se sucederam. Disso se
constata que, tanto a ação de interpretar quanto a de transmitir são
realizadas por pessoas que estão situadas no tempo e no espaço e,
portanto, são passíveis de ser influenciadas pelas circunstâncias
históricas e temporais. Especialmente, em nosso tempo, com a
multiplicação de muitas religiões de matriz cristã e com o ceticismo
moderno, surgem questões relativas à interpretação e à transmissão da
Revelação, tais como, se o que se anuncia fora mesmo dito por Jesus, o
Cristo, e/ou por seus contemporâneos. A existência do ditado popular:
‘quem conta um conto acrescenta um ponto’ revela que toda transmissão
contém também uma interpretação. De outro lado, na perspectiva da fé, a
interpretação deve ser vista como um serviço que a Igreja presta à
comunidade, e cabe ao ouvinte ter discernimento para buscar a essência
do anúncio.
Os questionamentos relativos à
transmissão e interpretação da Sagrada Escritura tomaram vulto a partir
da Reforma Protestante (1517) quando Lutero questionou se os
ensinamentos da Igreja eram fundamentados na Bíblia ou nos ensinamentos
do clero e na doutrina acumulada nos séculos anteriores. O Concílio de
Trento (1545 a 1563), conhecido também como Contra-Reforma, confirmou
que o Magistério da Igreja e a Tradição eram responsáveis pela
‘interpretação’ e ‘transmissão’ da Revelação Divina contida na Sagrada
Escritura e que somente o clero poderia interpretar e transmitir a
Palavra de Deus. Isto foi aceito pela comunidade católica, mas não pelas
Igrejas ligadas à Reforma Protestante que continuavam a defender que
cada fiel possui a graça para interpretar a Sagrada Escritura, a seu
modo. A partir do século XVI a Igreja também sofreu severas críticas da
sociedade moderna por tentar conter as ideologias que esta propagava,
essencialmente, a supervalorização da subjetividade e a liberdade de
consciência, e pela forma da Igreja de se fazer presente na sociedade.
Entretanto,alguns membros do clero se esforçavam por tornar a Igreja
aberta e interessada nos estudos bíblicos. Em 1890, os dominicanos
fundaram, por conta própria, a Escola Bíblica de Jerusalém que muito
contribuiu para os estudos bíblicos e para as futuras traduções da
Sagrada Escritura. Atento aos sinais dos tempos, o papa Leão XIII
(1878-1903) que era bastante sensível às mudanças na Igreja criou, em
1902, a Pontifícia Comissão Bíblica e a responsabilizou por promover os
estudos da Sagrada Escritura. Em 1909, durante o pontificado de Pio X,
esta Comissão fundou o Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, com a
finalidade de zelar pela ortodoxia [1] católica nos estudos bíblicos. A
partir de 1942, o movimento francês “Nova Teologia” retomou o estudo das
fontes cristãs: ‘A Escritura e os escritos Patrísticos ’e deu-se
início à publicação da coleção de textos antigos Sources Chretiennes
(Fontes Cristãs). Em 1943, consciente das novas pesquisas bíblicas nos
meios protestante e católico, o papa Pio XII publica a Encíclica Divino Afllante Spiritu
que reconhece a importância dos estudos e da exegese bíblica [2], o que
foi visto como um grande avanço da Igreja, por isso, ela é considerada a
precursora da Constituição Dogmática DV.
É, pois, dentro deste contexto que os
padres conciliares entenderam que era o momento da Igreja se posicionar
diante de um assunto tão importante. Durante três anos, estudaram,
debateram e publicaram a DV. Isso não significa que todas as opiniões
foram concordes na produção do documento, tanto que foi um dos mais
demorados a ser produzido. Entretanto, ele deve ser visto na perspectiva
do Concílio: uma Igreja que deseja se abrir ao mundo e às várias
realidades eclesiais, por isso o Vaticano II teve a participação de
bispos de todos os continentes. O resultado foi deixar claro que a
Revelação de Deus é dinâmica e que, justamente por isso, o conjunto dos
livros que formam a Sagrada Escritura deve ser sempre objeto de estudo.
A DV procura legitimar que a transmissão
da Revelação Divina faz parte do Magistério, segundo a Tradição
Apostólica. Ela recorda que Cristo Senhor ordenou aos apóstolos o
anúncio e a pregação do Evangelho que Ele veio cumprir como fonte de
toda verdade e de toda regra moral, comunicando-lhes, assim, os dons
divinos. E eles cumpriram este mandato fielmente! E, para perpetuar esta
missão, deixaram como seus sucessores os bispos, ‘transmitindo-lhes a
sua própria função de ensinar’; e, para que o Evangelho se conservasse
perenemente íntegro e vivo na Igreja, interpretassem a Revelação de
Deus contida na Sagrada Escritura e a atualizassem a seu tempo,
compreendendo, assim, que a Revelação é continua.
A Igreja entende que a Tradição
Apostólica está relacionada ao ensinamento da doutrina que é feita pelo
Magistério, e corresponde à forma como a Igreja vive e ao culto que
realiza no seu tempo, transmitindo a todas as gerações aquilo que é e o
que crê, acreditando que o conhecimento da verdade divina é cumulativo.
Nisto reside a Tradição, tal qual um tesouro em que, a cada dia, se
descobre e se interpreta de forma renovada a Palavra de Deus, entendendo
que Deus se comunicou e se comunica através das Sagradas Escrituras
(DV8).
A Tradição Apostólica e a Sagrada
Escritura estão estreitamente relacionadas entre si, pois derivam da
mesma fonte divina que é Jesus Cristo. Ambas se caracterizam por
conterem em si mesmas o Verbo de Deus, Jesus Cristo, a Palavra de Deus,
inspirada pelo Espírito Santo escrita na Sagrada Escritura, ou confiada
diretamente aos apóstolos pelo próprio Cristo Senhor na Sagrada
Tradição. A respeito de todas as coisas reveladas, portanto, a Igreja
tira a sua certeza tanto de uma como de outra, e portanto, ambas devem
ser recebidas e veneradas com igual afeto e piedade (DV9). A Tradição Apostólica não fecha o acesso à Escritura,
ao contrário o abre, portanto, a Tradição e a Sagrada Escritura
constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja.
Somente ao Magistério vivo da Igreja, ao
sacerdócio ministerial hierárquico cuja autoridade é exercida em nome
de Jesus Cristo, é confiada a interpretação autêntica da palavra de Deus
contida na Tradição ou na Sagrada Escritura, não estando ele, portanto,
acima da palavra divina, mas ao seu serviço na transmissão e no
ensinamento, inspirado sempre pelo Santo Espírito. Fica, portanto,
perfeitamente explicitado que a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o
Magistério da Igreja, segundo o perfeito plano de Deus, estão de tal
maneira ligados entre si que um não se mantém sem o outro e, juntos,
cada um ao seu modo, sob a ação de um só Espírito Santo, colaboram
eficazmente para a salvação das almas (DV10).
O Papa Bento XVI, no Encontro dos membros do Pontifício Instituto Bíblico, por
ocasião do centenário da sua fundação em 2009, recordou que “à Igreja
está confiada a tarefa de interpretar autenticamente a Palavra de Deus”,
e pediu que a Sagrada Escritura seja, neste mundo secularizado, não só a
alma da teologia, mas também a fonte da espiritualidade e do vigor da
fé de todos os crentes de Cristo, e que os bispos, conscientes do
serviço que lhes pede a Igreja, aproximem a Bíblia à vida do Povo de
Deus para que confronte adequadamente as provocações que os tempos
modernos expõem à nova evangelização.
[1] Ortodoxia: A palavra vem do grego “orthós” = retos e “dóxa” = opinião que, por analogia, expressa a correta doutrina.
[2] exegese: É a interpretação minuciosa de um texto ou uma obra que busca o sentido que o autor lhe deu.
Para refletir:
- Como a sua Paróquia, ou a sua comunidade, tem cumprido a responsabilidade da transmissão do Evangelho?
- O que você entende por ‘A Tradição da Igreja é de origem apostólica’.
- Como você entende a relação existente da Tradição Apostólica e da Sagrada Escritura com o Magistério da Igreja?
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