Ao
cair da tarde de 3 de outubro de 1226, a febre aumentou e as forças
reduziram-se como uma chamazinha que sai e não sai do pavio quase seco
de óleo. Então Francisco quis ser colocado sobre a terra e pediu que
cantassem. E ele também cantou, com os seus, o salmo 141, que fala do
desejo de ir para Deus:
“Em voz alta ao Senhor eu imploro,
em voz alta suplico ao Senhor!
Eu derramo na sua presença
o lamento da minha aflição,
diante dele coloco minha dor!
Quando em mim desfalece a minh’alma,
conheceis, ó Senhor, meus caminhos!
Na estrada por onde eu andava
contra mim ocultaram ciladas.
Se me volto à direita e procuro,
não encontro quem cuide de mim
e nem tenho aonde fugir;
não importa a ninguém a minha vida!
A vós grito, Senhor, a vós clamo
e vos digo: ‘Sois vós meu abrigo,
minha herança na terra dos vivos’,
Escutai meu clamor, minha prece,
porque fui por demais humilhado!”
Quando, levados pela melodia, os frades começaram a cantar:
“Arrancai-me, Senhor, da prisão,
e em louvor bendirei vosso nome!
Muitos justos virão rodear-me
pelo bem que fizestes por mim”.
Francisco havia deixado seu corpo sobre a terra.
O
Canto enfraqueceu e se apagou na boca dos frades, que recitaram o
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo como conclusão do salmo
entre lágrimas e emocionados.
Fez-se silêncio na cabana. Parecia que a natureza ao redor tivesse emudecido.
Carta Encíclica de Frei Elias sobre o Transitus de São Francisco, das Fontes Franciscanas:
“Era
luz verdadeira a presença de nosso irmão e Pai Francisco, não só para
nós que compartilhávamos da mesma profissão de vida, mas também para os
que estavam longe. Era, pois, luz, enviada pela luz que iluminava os que
estavam nas trevas e na sombra da morte, para dirigir seus passos no
caminho da paz. Isto ele fez, como verdadeira luz do meio-dia, que
nascendo do alto, iluminava o seu coração e acendia a sua vontade com o
fogo de seu amor… Seu nome é celebrado até os confins mais longínquos e
todo o universo admira as maravilhas de sua obra.
(…)
Alegremo-nos porque antes de ser arrebatado de nós, qual outro Jacó,
abençoou todos os seus filhos e perdoou a todos por qualquer erro que
tivesse cometido ou pensado contra ele…
(…)
Enquanto era vivo, tinha um aspecto descuidado, não havia beleza em seu
rosto; nenhum membro havia restado nele que não estivesse dolorido.
Devido à contração dos nervos, seus membros estavam rígidos como os de
um cadáver. Mas depois de sua morte, seu semblante ficou belíssimo,
brilhando com admirável candura, alegrando a visão. Portanto, irmãos,
bendizei o Deus do céu e dai-lhe glória diante de todo o ser vivente,
porque Ele usou de misericórdia para conosco. Guardai a lembrança de
nosso Pai e Irmão Francisco para louvor e glória daquele que o
engrandeceu entre os homens e o glorificou perante os anjos. Rezai por
ele, conforme ele mesmo pediu antes de morrer e invocai-o para que Deus
nos faça participantes com ele de sua santa Graça. Amém. T
Posted: 03 Oct 2012 02:47 PM PDT
Por Frei José Ariovaldo da Silva, OFM
Vocês
conhecem São Francisco de Assis. Morreu à tardinha do dia 3 de outubro
de 1226. Conhecido como o santo dos passarinhos. Amigo dos animais. Da
natureza toda. Padroeiro da ecologia. O santo da paz. O santo fraterno.
Da fraternidade universal, humana e cósmica. Reconciliado com tudo e com
todos, até mesmo com a morte, à qual ele chama de Irmã. O santo que
descobriu e viveu profundamente o Amor. Tudo isso e ainda muito mais, a
partir de uma profunda experiência de Deus, atestada pelos seus escritos
e os de seus biógrafos (1). Não o Deus fabricado por especulações
filosóficas ou teológicas, mas o Deus do Evangelho. O Deus de Jesus
Cristo. Foi beijando certa vez um leproso que Francisco sentiu
profundamente de que jeito Deus é. Beijando um leproso, ele se lembrou
de Jesus pobre, desprezado, sofrido, marginalizado, crucificado,
abandonado, só por amor de nós e para nos salvar. Foi beijando um
leproso e lembrando do Jesus “que se fez leproso” (2) por nosso amor,
que Francisco fez esta grande descoberta: Deus é pobre. Sim, Deus é
pobre! E a Pobreza - com “P” maiúsculo, esse modo característico de Deus
ser! - passa a ser para ele a grande paixão de sua vida, a sua amada, a
dama de sua vida e de suas canções, até a hora derradeira, a morte
corporal.
2. Francisco: uma vida em celebração
A
partir desta experiência de Deus como Pobre e que por isso é Criador e
Salvador, Francisco se tornou um cristão que vivia para celebrar este
Deus. Lendo os escritos franciscanos mais antigos, notamos como a vida
deste santo é toda pautada pela oração, pelo louvor, pela celebração,
por um imenso amor à Eucaristia e por uma intensa vida de fraternidade. E
o fazia criativamente, com a singeleza e a simplicidade pura de um
pobre cheio de Deus. Adorava celebrar. E de corpo inteiro. Pondo emoção,
afeto, coração, paixão, em suas celebrações. Por exemplo, para celebrar
o nascimento de Jesus - a divina Pobreza encarnada no Menino pobre de
Belém - Francisco inventou o presépio. Foi ele quem inventou o presépio
de Natal! E assim, desta maneira, ele encena e torna palpável aos olhos,
à mente e ao coração, o Deus que se revelou Pobre para nos libertar de
nossas misérias.
3. E celebrando sua própria morte
Vou destacar e comentar brevemente para vocês, aqui, um exemplo típico de celebração litúrgica feita por Francisco. Uma celebração memorial, na sua estrutura, até bem parecida com muitas que são feitas hoje em nossas comunidades. Comporta, basicamente, três partes. Há primeiro uma encenação; depois vem uma leitura do Evangelho; e, por fim, um momento de louvor que se prolonga até...
Vejam
como Tomás de Celano, o primeiro biógrafo de São Francisco, nos
apresenta esta celebração. Vejam como São Francisco de Assis celebra a
sua própria morte:
“Estando
os frades a chorar amargamente e a se lamentar sem consolação, o pai
santo mandou trazer um pão. Abençoou-o, partiu-o e deu um pedacinho para
cada um comer. Também mandou trazer um livro dos Evangelhos e pediu que
lessem o Evangelho de São João a partir do trecho que começa: ‘Antes do
dia da festa da Páscoa’, etc. Lembrava-se daquela sagrada ceia que foi a
última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo isso para
celebrar sua lembrança demonstrando todo o amor que tinha para com seus
frades.
Passou
a louvar os poucos dias que ainda restavam até sua morte, ensinando
seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia. Ele mesmo,
quanto lhe permitiam suas forças, entoou o Salmo: ‘Lanço um grande brado
ao Senhor, em alta voz imploro o Senhor’, etc. Convidava também todas
as criaturas ao louvor de Deus e, usando uma composição que tinha feito
em outros tempos, exortava-as ao amor de Deus. Chegava a convidar para o
louvor até a própria morte, que todos temem e abominam e, correndo
alegre ao seu encontro, convidava-a com hospitalidade: ‘Bem-vinda seja
minha irmã, a morte!’ Ao médico disse: ‘Irmão médico, diga com coragem
que minha morte está próxima, para mim ela é a porta da vida!’ E aos
frades:
‘Quando
perceberdes que cheguei ao fim, do jeito que me vistes despido antes de
ontem, assim me colocai no chão, e lá me deixai ficar mesmo depois de
morto, pelo tempo que alguém levaria para caminhar uma milha, devagar’.
E assim chegou a hora. Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus” (3).
Lá está Francisco, deitado, muito debilitado. À beira da morte. Os frades começam a chorar. E choram amargamente. Desconsolados, lamentam esta triste situação: A perda de um pai; a desgraça da morte.
Vendo
os frades neste estado, Francisco, que queria tanto bem a eles, toma a
iniciativa de fazer uma celebração. E assim, desta maneira tão humana e
divina, ele consola os frades e os encoraja. Como? Transportando-os, no
envolvimento desta celebração, para a Última Ceia de Jesus e, em Jesus,
para o sentido positivo da própria morte. E ali está: “Uma comunidade
eclesial que celebra liturgicamente, com Francisco, a morte deste” (5).
a) O gesto de partir o pão
Francisco manda trazer um pão. Abençoou o pão. Partiu-o e deu um pedacinho para cada um comer.
Através
deste gesto, Francisco encena a Última Ceia que Jesus fez com seus
discípulos antes de morrer. Assim recorda o imenso ato de amor e de
doação total e perene de Jesus à humanidade, perpetuado na Eucaristia
que ele reverenciava o máximo, pois o Corpo do Senhor não é senão o
Pobre e Humilde que ele descobriu ao beijar o leproso (6).
O
gesto se relaciona com a despedida de Jesus a seus discípulos. Os
frades, semelhantemente aos discípulos de Jesus, aqui assistem à
representação que Francisco faz de “sua” Última Ceia. Deste modo,
Francisco celebra também a sua doação total ao Senhor, servindo aos
irmãos, na vida e na morte que se aproxima. “Em obediência total a
Cristo, seu Mestre e Senhor, põe em ação sua diaconia revivendo a
lembrança daquela santíssima noite com uma celebração litúrgica
‘sui-generis’, à qual associa todos os frades ali presentes” (7). Assim
ele “leva os frades a suportar a dor de sua morte, para vivenciar a
alegria de quem sente e possui a presença do Senhor” (8).
b) Leitura do Evangelho de João
Francisco mandou trazer também o livro dos Evangelhos. Pediu para alguém ler o Evangelho de João, capítulo 13,1-15. É o texto do lava-pés: Jesus, durante a Última Ceia, levantou-se, cingiu-se com uma toalha, e lavou os pés dos discípulos, como exemplo de humildade e serviço a ser seguido por todos.
Portanto,
Francisco completa a representação de “sua Última Ceia” integrando nela
esta leitura de João. É bom lembrar que, na época, quando alguém estava
para morrer, após lhe serem ministrados os santos sacramentos, se lia
um texto evangélico da Paixão do Senhor. Geralmente de Marcos. Aqui, no
caso de Francisco, ele é original e criativo:
Ele
mesmo escolhe o texto; e um texto condizente com o momento que eles
estavam vivendo ali. Um texto que traz vivamente presente, neste “clima”
de Última Cela, o exemplo de humildade, de minoridade e de serviço do
Senhor Jesus, que ele abraçou com toda a paixão.
c) Tudo Isso para se lembrar da Última Cela e por amor aos frades
Assim, como narra Tomás de Celano, Francisco “lembrava-se daquela sagrada ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo Isso para celebrar o amor que tinha para com os seus frades”.
Em
outras palavras. Francisco se transporta e transporta os frades para a
centralidade do seu ideal, que supera o horror da morte. Esta
centralidade é o Senhor, pobre, humilde, menor, servo de todos que, na
Eucaristia, assume a forma humilde de pão e de vinho, e na Palavra
revela a presença do seu amor-serviço. O amor de Francisco, iluminado
pela lembrança da Última Ceia do Senhor nesta celebração, conduz os
frades a uma visão positiva da morte. Em vez de chorar, eles devem agora
cantar. Devem passar (Páscoa!) do luto para a festa da vida que chega
pelas portas da morte.
d) O momento de louvor
Diz Tomás de Celano que Francisco passou então “a louvar os poucos dias que ainda restavam até sua morte”. E não só isso. Ele o fez, “ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia”.
É
o momento de louvor, na celebração. Como em tantas celebrações de
nossas comunidades... Tem sempre o momento de louvor, que é o momento
alto. Francisco louva, porque sente estar próximo o dia de sua passagem
para a vida. Graças a Jesus Cristo. Por isso, os frades, que antes
estavam tristes, chorando, desconsolados se lamentando, agora podem com
seu pai cantar, louvar o imenso amor de Jesus Cristo que nos salvou.
Francisco louva, entoando o Salmo 141. Convida todas as criaturas ao louvor de Deus. Para tanto, usa inclusive o Poema que ele mesmo havia composto, o célebre “Cântico do Irmão Sol”, através do qual também exorta todas as criaturas ao amor de Deus. Chega a convidar para o louvor até a própria morte que se aproximava, à qual dá as boas-vindas, como sua irmã. Louva a Deus pela irmã morte. Louva, porque esta, “que todos temem e abominam’, para Francisco é sentida como “a porta da vida”. Louva, pois ele, a esta altura, estava plenamente identificado com a Fonte da Vida: Deus (9). Assim, em Francisco ainda vivo, no embalo desta celebração, a morte já era percebida como tragada pela Vida. Os frades não precisam mais chorar nem se lamentar: mas sim celebrar o mistério do Amor que ali se fazia presente.
Podemos concluir com as palavras do meu confrade espanhol. J. Tresserras Basela: Vimos como, pela narração de Tomás de Celano, se destaca “o caráter de celebração-memorial que a morte de Francisco tem”. Vemos aí “o caminho ascendente do Pobrezinho de Assis que se prepara para participar da Ressurreição. E não querendo permanecer só, neste momento, ele envolve nesta celebração os frades e toda a criação para que com ele gozem da plenitude deste momento” (10)
Para
nós, para as nossas comunidades e para as equipes de liturgia, fica
este exemplo de São Francisco: Uma celebração será boa, isto é, viva,
criativa, envolvente, convincente, e produzirá frutos de evangelização,
se ela vier carregada de uma mística, se ela vier carregada de uma
experiência de Deus, do Deus Pobre que está do lado do pobre.
___
(1).
Cf. São Francisco de Assis, Escritos e biografias de São Francisco de
Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano,
Vozes/CEFEPAL, Petrópolis 1981. Cf. também L. Boff, São Francisco de
Assis: Ternura e Vigor, Vozes, Petrópolis 1982.
(2).
Cf. São Boaventura, “Legenda Maior” I, 6, em: São Francisco de Assis,
Escritos e biografias..., op. cit, p. 468: I Fioretti, 25, em: Ibidem,
p. 1130.
(3). Cf. São Francisco de Assis, Escritos e biografias..., op. clt., p. 441.
(4).
Cf , J. TRESSERRAS Basela. La muerte de San Francisco como celebración
memorial Análisis de la “Vita secunda” 217 de Tomás de Celano,
comparación con otras biografias. Editrice Antonianum, Roma, 1990.
(5). Ibidem, p. 135.
(6). Cf. D. FLOOD. Frei Francisco e o Movimento Franciscano, Vozes/CEFEPAL. Petrópolis 1986. p. 158-178.
(7).
J. TRESSERRAS Basela, op. cit.. p. 143. ‘Francisco era apenas diácono,
não quis usurpar o poder sacerdotal de consagrar, mas quis imitar Jesus
até o fim. Foi então que realizou a celebração da aliança nova e eterna’
{L. Boff. op. cit., p. 176).
(8). J. TRESSERRAS Basela. op. ciL, p. 149.
(9) L.BOFF, op, cit, p.172-180; Idem, “Uma irmã de São Francisco: a morte”, Grande Sinal 36 (1982) p. 451-464
(10). J. TRESSERRAS Basela, op. Cit., p.212.
Texto
publicado na Revista Grande Sinal, Revista de Espiritualidade, de
propriedade da Província da Imaculada Conceição do Brasil e editada pelo
ITF, Petrópolis, 1994, Ano 48.
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