Recebi do Alexandre Dumas um exemplar do INFORMATIVO DA CSSR antigo, onde o Padre Alfredo Morgado publicou essa crônica que passamos a republicar aqui no blog em três partes, uma vez que é um tanto longa.
Vale a pena ler.
S.R.S.A. em revolução!
Estávamos na Pedrinha, em plenas ferias. Dia 9 de julho de 1932.
À noitinha, o Diretor, Pe. Agostinho, pediu a três seminaristas, e eu entre eles, que fossem à Venda, no Largo da igreja, comprar um pouco de gasolina.
Fomos até ao Largo, fizemos a nossa compra, e já estávamos de volta, bem para dentro da porteira de nosso terreno, quando fomos alcançados por um caboclinho que, um tanto ofegante, se aproximou e foi dizendo: "Voceis sabe que começou a guerra? Tão falano que é prá valê. Nois mata ô nois morre". Com as nossas perguntas, o que era, e o que não era, o caboclinho ficou confuso na sua explicação, mas deu para saber que se tratava de revolução em São Paulo, contra o governo ditatorial de Getúlio Vargas.
No seminário, contamos a história do garoto ao Diretor, mas somente no dia seguinte é que soubemos claro que, de fato, São Paulo se insurgira contra a Ditadura reinante, exigindo um Governo constitucional. Confirmada a noticia, o Diretor resolveu, para evitar complicações na vida do seminário, que voltássemos logo para Aparecida, no Colegião.
Voltamos. Quando percebemos, estávamos em meio de uma frente de combate, de um movimento armado. Nas estradas de Ferro e de Rodagem, eram soldados e mais soldados que, equipados para combate, passavam em trens e caminhões.
No Rádio, cousa rara naquele tempo, só se ouviam marchas marciais e notícias de movimento de tropas, e apelo ao povo para a resistência. Os jornais repisavam as noticias do Rádio com pormenores.
Quando saíamos a passeio pelos arredores de Aparecida, a velha estrada "Rio-Sao Paulo" que não era de asfalto mas apenas de macadame, mostrava-se continuamente envolta numa espiral sem fim de poeira vermelha pelo transporte contínuo de militares, ou melhor de,soldados, da Força Pública de S, Paulo, que enfrentaram os primeiros embates da revolução. Somente aos poucos é que se formou o Corpo de Voluntários Paulistas.
Os combates que se travavam nos limites do Estado de S. Paulo com Rio de Janeiro, e na região do túnel da Estrada de Ferro, na divisa com Minas Gerais, aos poucos foram recuando para dentro do Estado de S. Paulo. Os soldados do "Ditatoriais", e os Paulistas chamavam-se "Soldados da Constituição" ou "Constitucionalistas". Naqueles dias surgiu a palavra mais comprida: "Anticonstitucionalissimamente".
Aparecida, de repente, viu-se envolvida no militarismo. À esquerda da estrada "Aparecida-Guaratinguetá" improvisou-se um campo de aviação para os aviões paulistas. O Grupo Escolar "Chagas Pereira" foi transformado em hospital militar.
Os aviões da Ditadura começaram a fazer escaramuças nos céus da cidade. Reparamos que cada dia os aviões de S. Paulo, pelas 8.30 ou 9hs. da manhã, decolavam e desapareciam rumo ao Rio de Janeiro e voltavam algum tempo depois aterrissando e se ocultando na mata junto ao campo. Pelas 11 hs. apareciam os aviões da Ditadura, bombardeando arredores da cidade, metralhando, e depois desapareciam voltando para seus fronts. Às 14.30 ou 15 hs., novamente, os paulistas se punham no ar tomando o mesmo rumo; de volta, tratavam de se enfiar nos abrigos ocultos pela mata. Afinal, pela tardinha, estavam os ditatoriais, mais uma vez, com suas bombas e metralhas atormentando Aparecida. Até parecia uma ação programada. Jamais se encontraram no ar.
Os aviões da Ditadura eram todos vermelhos, tipo francês, disparavam a metralhadora por sobre as asas. Apesar de serem todos vermelhos, o povo identificou um que chamava de "O vermelhinho". Dizia-se que era pilotado pelo tal "Melo Maluco", e era muito temido pelo povo, visto que se afastava dos outros e fazendo diabruras no ar, metralhava e bombardeava mais que todos os outros.
Das bombas, não tínhamos medo, porque sabíamos que caíam nos locais sobrevoados pelos aviões; o perigo eram as rajadas de metralhadoras. Atirando por sobre as asas, para o lado para o qual se inclinava, não se podia prever onde iriam dar as balas. Um velho, do Asilo, sentado na varanda do prédio, foi atingido, sem maior perigo, por uma dessas rajadas. Um dos nossos padres, indo do seminário para o convento, ouviu o sibilar de uma rajada junto dele.
As férias haviam terminado e estávamos em estudo, ou melhor, em tempo de estudo. Mas, que tempo?...O clima de revolução numa área que dia a dia se tornava mais belicosa, não se podia ter a atenção necessária. E piorava quando se ouvia o ronco dos aviões vermelhos e o sibilar de suas bombas .
Nas aulas do Pe. Artur Bonotti, quando os "Vermelhinhos" surgiam, a certa altura ele dizia: Vamos ver os Vermelhinhos e depois continuaremos com a aula. E por 10 minutos ficávamos à janela admirando as travessuras dos aviões da Ditadura, especialmente do "tal" Vermelhinho. Quando um descia "em pique" sabíamos que bomba iria cair por lá. Lançada a bomba, o avião com o motor roncando, e dando o que tinha, subia quase que em vertical para ganhar altura, enquanto o estouro da bomba ecoava por toda a cidade. Felizmente, as bombas visavam mais o campo dos aviões, a Estrada de Ferro e algum ninho de metralhadora anti-aérea nos morros, assim que não nos intimidavam tanto.
Certo dia, a tarde, durante a recreação, ouvimos o ronco dos ditatoriais e alguém avisou que estavam bombardeando o campo de aviação de S. Paulo. Não sei quem tomou a dianteira, o certo é que, em poucos minutos, estávamos todos no terraço do colegião (onde nem em tempos normais podíamos ir sem licença do Diretor), olhando para o campo de pouso onde um avião de S. Paulo, e o maior que não se conseguiu ocultar na mata, estava todo em chamas por uma bomba incendiária lançada pelo "tal" Vermelhinho. Mal porém avistamos o avião em fogo, ouvimos atrás de nós a voz do Diretor: Desçam logo para baixo. Quem deu ordem para subirem? Mais depressa do que subimos fomos parar em nosso campo de jogos...
E a cousa ficava cada vez mais preta para a região de Aparecida. O ambiente bélico sempre mais intenso. Já iam aparecendo pobres desabrigados que, fugindo das zonas de combate, iam se retirando para cidades mais distantes do "Front".
Durante o dia já se ouvia o troar do canhão, e durante a noite ecoava mais forte acompanhado do pipocar das metralhas e dos fuzis.
São Paulo lutava sozinho, defendendo-se em todas as frentes como podia...
Aparecida também começou a se movimentar entrando num clima de luta.
Nossos padres alemães, para proteçao sua, estenderam sobre o telhado do convento uma bandeira alemã.O grupo da cidade, transformado em hospital, já não comportava os feridos. Na cidade surgiu um Corpo de Voluntários formando o Batalhão N. Sra. Aparecida, de cuja formação participou o Pe. Antão Jorge, Superior de nosso convento em Aparecida naqueles dias.
E por lembrar o Pe. Antão, certo dia estava ele com o Sr. José Borges, lá pelo campo de aviação dos paulistas, quando apareceram os "Vermelhinhos" descarregando bombas por lá. Os dois se enfiaram mata a dentro e se pincharam ao chão. Felizmente nada aconteceu com eles.
A alimentação ia se tornando escassa. As recomendações para a economia, e ao espírito de pobreza por parte do Diretor, eram constantes. Acompanhando o café da manha, tínhamos uma broazinha de fubá que, de nossa parte, até era apreciada.
E um dia estourou a notícia: O colegião foi requisitado pela Revolução.
Depois do choque da notícia, as primeiras providências: O Primeiro Ginasial iria para Pindamonhangaba juntar-se ao Preparatório. Os outros iriam, de trem, para a Penha, em São Paulo. De fato, os destinados à Pinda seguiram logo para lá, enquanto os outros ficaram aguardando o trem para S. Paulo.
E os soldados foram chegando ao seminário.
Logo de início o Comandante do Vale do Paraíba, de acordo com o Diretor, fez com que os móveis e utensílios do seminário fossem reunidos em diversos cômodos cujas portas foram pregadas, guarnecidas de uma travessa com a Ordem do Comandante, e assinada por ele: Reservado para o seminário.
Tudo o que compunha os gabinetes de física e química, Pe. Paulo fez que transportássemos, e com que cuidado, para o porão do convento junto à Basílica.
Enquanto aguardávamos o trem para S. Paulo (e que não aparecia), tínhamos a nossa disposição, no seminário: a cozinha e o refeitório, a capela, a sala de estudos e o banheiro adjacente.
Os nossos dormitórios foram logo ocupados. O Comandante andando num passinho bem curto, a cada passo ia marcando o local dos soldados com um número. E onde dormíamos em vinte camas, foram alojados 80 a 100 soldados.
Íamos convivendo com os militares. Era um contínuo entrar e sair de soldados e carros.
Nos fundos do “Colegião”, onde ficavam os nossos “lava=pés", instalou-se uma cozinha de campanha que servia aos militares e aos retirantes pobres e desalojados. Era de se ver a longa fila de pobres que com vasilhas de toda espécie, buscavam seu alimento.
O campo à frente do seminário, o sítio hoje ocupado pela Casa das Mensageiras, transformou-se num cemitério de carros avariados, em que durante dia e noite havia gente "desapertando" peças. Até uns seminaristas mais afoitos, sem que o Diretor percebesse, andaram por lá, a noitinha, catando buzinas e motores de arranque etc. Disso o Diretor nunca soube, visto que o colegião, com sua vastidão, em grande parte inacabada, inabitável, oferecia locais à vontade para esconderijos.
Os soldados constitucionalistas - de S. Paulo - quando superados pelos ditatoriais, iam-se retirando para postos de resistência mais à retaguarda, apoderando-se de utensílios e objetos deixados nas casas pelos que procuravam segurança mais para o interior. E oferecendo-nos esses utensílios, ficavam admirados com a nossa recusa.
Os nossos campos de jogos e as canchas de bochas também foram ocupados, e no começo íamos ver a turma jogar bochas, e conversávamos com os soldados, mas a conversa por la não era para nós.
Certa vez um soldado nos perguntou se todos queríamos ser padres. Diante da resposta afirmativa, ele, girando seu revolver em piruetas, nos disse: Vocês não tem gosto; bom é manobrar isto aqui.
Um dia estávamos assistindo uma partida de bocha entre eles, quando um saiu com esta proposta: Vamos jogar que quero mostrar como se joga. Se eu perder, desço as calças na frente de vocês e... Nessa altura fizemos como os fariseus diante da adúltera, não por culpa mas por constrangimento e vergonha, fomos nos retirando a começar pelos mais velhos.,.
Os aviões da Ditadura continuavam roncando nos céus de Aparecida, com suas bombas e metralhas. Dias inteiros sobrevoavam os arredores da cidade, talvez mais inspecionando a Estrada de Ferro, de Rodagem e Movimento de Tropas. Mas era inquietante... o estudo era impossível para nós.
Era interessante observar que as bombas dos aviões abriam no chão uma cratera de uns 2 para 3 metros de diâmetro. E mal os aviões desapareciam; se retirando, uma turma de garotos corria para essas crateras a catar os fragmentos e estilhaços das bombas.
Pe. Alfredo da Silva Morgado
(continua amanhã)
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