
PADRE RAFAEL VIEIRA CSsR (PARABÉNS!)
Uma vez, durante o período no qual eu estudei em Roma, um confrade italiano que sabia do curso de especialização em televisão que eu fazia, me disse: “jornalistas fazem parte de uma raça perdida!”. Lembrei-me disso ao ler a sucessão de matérias que foram publicadas a respeito do lançamento da Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis do Papa Bento XVI. A maior parte daqueles profissionais que refazem o material redigido por Agência de Notícias não tem acesso imediato ao texto ou não se dá ao trabalho de ler o documento na íntegra e, por isso, repassa as impressões de quem, de primeira, fez o registro do fato. Isso sem falar que os jornalistas, em geral, desconsideram o contexto da reflexão e nem se lembram que, além de se dirigir aos fiéis leigos e às pessoas consagradas, em primeiro lugar, uma declaração desse tipo se destina a bispos e padres que possuem uma base teológica e doutrinária que os habilitam a entender as expressões mais problemáticas. Isso não interessa. Pinçam as afirmações que mais podem render polêmicas e reduzem uma profunda meditação sobre a Eucaristia, oriunda do trabalho de pessoas do mundo inteiro no esforço eclesial realizado em 2005 no Sínodo dos Bispos. O que fica e passa a ser repetida, alfinetada e até ridicularizada, é apenas uma referência menos importante e que foi, no fundo, um suspiro de preocupação do Pastor Universal da Igreja diante de um indiscutível quadro de problemas vivido por quem se casa e se separa. Cansei de ler, estes dias, que o Papa chama o segundo casamento de “praga” e até mesmo mentem ao dizer que ele tenha chamado assim as pessoas que se casam novamente. Pronto. Está decretado que a discussão tem que colocar essa palavra em primeiro plano e tudo agora deve girar em torno disso. As pessoas ficam, por força desse decreto, desestimuladas a conhecer a grandiosidade de uma legítima manifestação do Magistério Católico.
A Exortação trata da Eucaristia e é um marco emanado da celebração do Ano da Eucaristia instituído pelo Papa João Paulo II. Traz uma belíssima teologia desse sacramento contemplada sob as perspectivas da fé, da celebração e da vida. Nele encontram-se palavras muito bonitas e inspiradoras a respeito do mistério central que envolve toda a vida cristã. Está equivocada ou, no mínimo, é fortemente parcial e até mesmo maliciosa, a leitura daqueles que propagam que o Papa escreveu para impedir a participação de algumas pessoas na grande festa pascal atualizada em cada missa. Muito pelo contrário, a reflexão contém uma catequese consistente que leva a um conhecimento maior e a uma vivência mais vigorosa da Eucaristia. Nela, experimenta-se, na fé, “a doação que Jesus Cristo faz de Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem”(SC, n.1). Esse é o conteúdo central e para o qual convergem os quase 100 parágrafos da Exortação. E é do coração dessa convicção que surgem todos os outros comentários presentes no documento sendo que alguns poucos são, naturalmente, de menor significado dentro dos objetivos escolhidos pelo Papa ao assinar esse pronunciamento oportuno. Um deles, na minha opinião, é justamente a consideração sobre as segundas núpcias como uma espécie de praga social.
Jose Maria Mayrink, jornalista mineiro, conhecedor da linguagem da Igreja, tentou não cair na vala comum e fez uma pesquisa para o jornal Estado de São Paulo sobre o termo tão explorado e mostrou que em italiano, francês, espanhol e até mesmo em línguas sem origem no latim como polonês, alemão e inglês, as palavras “praga” e “chaga”, diferentemente do português, são sinônimas. Isso pode levar a crer que pode não ter feito parte da intenção do Papa de empregar o termo no sentido que nós entendemos. Apesar de muita gente da própria Igreja ter confirmado ao Mayrink que Bento XVI quis dizer mesmo foi o que o brasileiro normalmente entende, prefiro achar mais coerente com o conjunto do documento do Papa a constatação de que a multiplicação de rupturas do compromisso matrimonial é, em nossas sociedades, uma ferida que faz sofrer mulheres e homens. E admito até mesmo que se há um parentesco da palavra com o uso no Brasil, pode ser naquela conotação de que uma praga é exatamente o que nasce em toda parte sem ser plantado. Uma proliferação indesejada. Dessa maneira, não há fundamento suficiente para dar base à comentários como o do costumeiramente inspirado Rubem Alves, na Folha de São Paulo, que escreveu, com máxima ironia, que os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso e que nessa ordem não se pode confiar no amor. E sugere que talvez seja por isso que os padres não se casam. Tanto verbo! Apesar da licença poética, há muito de resposta conformada à onda da leitura superficial feita pelos jornais.
O lastro de intolerância produzido pelo modo apressado dos jornalistas acolherem a palavra da Igreja ultrapassa a história da praga. Falou-se que o Papa renega o Vaticano II. Ele faz explícita reverência ao Concílio ao lembrar que os participantes do Sínodo de 2005 refletiram com a consciência dos grandes avanços de sua Reforma Litúrgica. Falou-se que o Papa quer agora que as missas sejam celebradas em latim. Quem levou a sério, despojou-se dos preconceitos e leu a Exortação com serenidade nota que só há um apreço dele pela execução de algumas partes das celebrações em língua latina para significar uma comunhão eclesial em sintonia com a Tradição. Nada além disso. Liturgia é o espaço de grande presença simbólica. Palavras e gestos têm dimensões transcendentais. E nem é exclusividade do Papa o gosto por cerimônias desse tipo. Carlos Heitor Cony, escritor conhecido e respeitado, ex-seminarista e ateu assumido nos últimos tempos diz que ama participar das celebrações em latim com cantos gregorianos pela aura que se cria, produzida exatamente pela força de uma língua morta. Falou-se, por fim, que o Papa elogiou o celibato sacerdotal. Realmente, ele elogiou. Não deu grande espaço para isso. Foi coisa de poucas frases. Colegas: não queiramos que o Papa não seja católico, tenham a paciência!
Pe. Rafael Vieira, CSsR / 26.03.2007
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