PADRE RAFAEL VIEIRA CSsR
Está sendo divulgado no Brasil, nesse início de ano, o último livro de André Comte-Sponville, o queridinho da filosofia francesa na atualidade. O titulo é curioso: Felicidade, desesperadamente. Na divulgação do trabalho feita na revista Época da semana passada, ele cita a frase de Woody Allen colocada como título acima e concorda com ela como uma forma de expressar a tese que defende no livro. Evidentemente, não li a obra, mas publiquei um trabalho, em 2005, com o mesmo tema e percebo que sigo uma trilha palidamente semelhante àquela proposta por essa autoridade do pensamento na França. Claro que não tenho nada de tão profundo e genial como tem os livros de Comte-Sponville e muito menos com as tiradas inteligentes de Allen. Os dois são ateus, eu sou crente. Para mim, no entanto, a felicidade também é reconhecida como fruto da verdade. A verdade que se manifesta em facetas de mistério. A verdade de nossas mais profundas raízes. A verdade de nossas escolhas. A verdade de cortes que realizamos na vida e a verdade do sereno acolhimento do tempo da semente, do cultivo e da colheita. Escrevi meu livro sobre a felicidade usando essas expressões da verdade comparando-as com as fases do trabalho de uma colheita de aspargos.
Na verdade, nunca havia visto essa leguminosa num canteiro de horta até o dia em que, durante um trabalho missionário junto aos trabalhadores portugueses num cantão alemão da Suíça, fiz parte de uma equipe dos serviços domésticos na casa paroquial da cidade de Thun que fica distante uns 15 minutos de trem da capital, Berna. Depois de ter criado problemas para todos por não saber a quantia exata de água que devia ser jogada nos vasos que enfeitava a casa, fui convidado a cuidar das hortaliças. Um dia, achando que eu conhecia algo do ofício, o pároco me pediu que colhesse aspargos para o jantar. Fiquei meio perplexo, perguntei onde estavam, ele apontou para o rumo daqueles caules enfiados no chão. Tomei um cesto e não tive dúvidas: arranquei, firmemente, quase tudo o que estava plantado. Quando meu amigo viu aquilo, quase me mata. Disse coisas incompreensíveis. A minha sorte é que não entendo alemão, nos comunicávamos em italiano e ele recorreu à sua língua materna para protestar. Fiquei ainda mais encabulado. Mais tarde, com calma, ele me explicou o crime que cometi. Não se colhia aspargos daquela maneira. O modo correto seria o seguinte: conservar as raízes, escolher os melhores turiões e fazer cortes precisos. Em seguida, era preciso ter a paciência de aguardar as próximas safras que chegariam após o inverno.
Aproveitei as lições desse incidente para tratar da felicidade. Tomei o processo da colheita desse parente da cebola como uma grande metáfora. Acho que ninguém conseguirá ser feliz se negar suas raízes. Se tentar arrancar tudo o que tem dentro de si. Se acreditar que o caminho certo será acabar com os sinais deixados pela genética, pela educação dos pais, pelas experiências vividas e marcantes. E também não se chega a ser feliz, quem não compreende que é preciso ser criterioso nas escolhas. Delas depende muito qual será a qualidade da vida de uma pessoa. Escolhas mal feitas podem ser a condenação a uma angústia permanente. Mas, uma vez consumadas, essas escolhas podem ser mudadas. Chega o momento da coragem para os cortes. A felicidade depende disso. Só é feliz quem encontra forças para fazer cessar os hábitos que são grilhões, que escravizam. Quem faz rupturas com pensamentos e sentimentos tóxicos. E, para concluir a reflexão do livro que publiquei há dois anos, apresento que há sempre a lição da espera de novas safras. Há tempo de felicidade exuberante e há tempo em que a única felicidade está no fato de saber que a aridez vai passar e que chegarão novas experiências boas. E creio que para esse ritmo os crentes estão abertos e são capazes de compreender.
Pelo que entendi da entrevista sobre o livro, Comte-Sponville discorda da fé porque acha que o único elemento capaz de garantir a felicidade é o amor. Ele chega a afirmar que Freud tem razão ao dizer que a depressão ou a melancolia é a perda da capacidade de amar. E, por isso, conclui que falta aos deprimidos não é a fé, mas o amor. Fiquei pensando se não é exatamente nesse nosso ponto de encontro. Se um cético famoso, filósofo culto que recorre a antigos pensadores como o grego Epicuro, o holandês Spinoza, os seus conterrâneo Pascal e Montaigne para descrever as condições da felicidade e chega a essa conclusão, não é justamente essa a expressão de evangelista João sobre Deus? Estou certo que é isso. O amor é o principal conteúdo da felicidade. Assim, curiosamente, estamos de acordo sobre a essência da felicidade que se pode viver sem tirar a graça da expressão do cineasta que todo mundo diz que faz filmes inteligentes, esnoba a Academia de cinema de Hollywood e gosta de tocar trompete, todas as semanas, num bar de Nova York.
Pe. Rafael Vieira, CSsR / 08.01.2007
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